Pagode do Didi, uma história brasileira
- Guilherme dos Santos
- 11 de mar.
- 7 min de leitura

Todas as sextas-feiras, o espaço que fica no encontro da rua Ulhôa Cintra e da rua Dr. José Henrique Vanderlei é palco de muito pagode, samba e tradição. Bem atrás da Agência Central dos Correios, no bairro Santo Antônio, centro do Recife, o local, pela manhã, é ocupado por diversos carros que ficam expostos à luz dura do sol. É por volta das 18h, no entanto, que o cenário se transforma.
No lugar da força do astro rei, é a luz boêmia da noite recifense que ilumina as pessoas que decidem se divertir por lá. Os automóveis dão espaço às mesas, que não são suficientes para comportar todo mundo: de jovens adultos a idosos, o ambiente é diverso. O som dos músicos completa a harmonia e anima a noite. A primeira vez em que a reportagem foi ao local, no dia dois de agosto de 2024, havia um motivo especial para que a alegria fosse maior. É que o Pagode do Didi, lugar onde todo esse encontro acontece, completava seus 43 anos.
A história do espaço começou e continua por meio do senhor que comanda a caixa registradora feita de madeira. Nascido e criado na capital pernambucana, Valdemir de Souza Ferreira, ou Didi, como é mais conhecido, 80, é músico, fã de futebol e patrimônio vivo de Pernambuco. Foi diante do desemprego, aos 37 anos, que ele decidiu abrir o seu próprio negócio, que dura até hoje.
Antes disso, Didi já era um personagem da noite do Recife. Seu último emprego havia sido na Adega da Mouraria, restaurante e casa de show que marcou sua época, alocada na mesma rua onde hoje é o Pagode. Por lá passaram grandes nomes, como Nelson Gonçalves, Jair Rodrigues e Ângela Maria. Durante dois anos de trabalho, era nas mãos de Didi que ficavam as chaves do restaurante.

Foi a partir da venda do estabelecimento que o nome do até então funcionário da Adega foi parar na lista de desempregados. A proposta de alugar o ponto bem ao lado do restaurante surgiu logo em seguida, e Didi, que já havia trabalhado em diversos outros ramos, como datilógrafo, faturista e até jogador de futebol, decidiu encarar mais esse desafio.
No empreendimento, a música fez parte desde o início. Para chamar a atenção da clientela, Didi se fez a própria atração, e com seu violão, banjo e cavaquinho, promovia serestas, chorinhos e muita MPB no seu negócio. Logo começou o movimento, e as parceiras e parceiros chegaram para compor as rodas de música. O pagode veio um pouco depois, quando Didi conheceu o grupo de samba carioca Fundo de Quintal. “Eu fui aprendendo as músicas e o pessoal foi acompanhando a brincadeira”, lembra Didi, “então foi aparecendo gente do morro, das escolas de samba. Um foi indicando o outro”.
O samba e o pagode passaram a fazer parte do repertório oficial das rodas. A partir daí, a majestade de Didi foi dividida com os dois gêneros musicais. Pouco depois, um amigo passista que daria a identidade e nome do local, ao pintar o letreiro que está presente na fachada até hoje. Assim foi batizado, diante da trindade do pagode, do samba e do homem, o Pagode do Didi.

A referência do samba de Pernambuco sou eu
Não foi à toa que a música assumiu um papel fundamental no empreendimento. Filho de músicos, Didi, ainda criança, se interessava pelos acordes do violão. O pai, no entanto, não queria que ele aprendesse nada desse mundo “para não esquecer dos estudos e da escola”, explica. Em reuniões musicais que aconteciam em sua própria casa, o menino, em sua ousadia infantil, chegou a comprar um afoxé, instrumento de percussão feito de cabaça e coberto por miçangas, para conseguir o passe para participar dos encontros. Adquirir um violão e um método (cartilha com conceitos básicos do instrumento) foram os passos seguintes, e ele foi aprendendo assim, de forma clandestina, até dominar a música.
O Pagode, por sua vez, é aberto para todos aqueles que desejam fazer parte da roda, basta saber fazer música, claro. Para Didi, o espaço funciona como forma de trazer visibilidade para muitos grupos e músicos, que garantem oportunidades no ramo a partir disso. “Quem toca aqui no pagode é bom”, comenta, orgulhoso, “aqui é o Jô Soares do samba”.
Muitos artistas nacionalmente conhecidos também entraram na roda de samba do centro de Recife. Arlindo Cruz, Biro do Cavaco, Nelson Rufino, Noca da Portela, Gera da vila Isabel, Preto Jóia, Só pra contrariar e Fundo de Quintal, que teve bastante influência no espaço, são alguns dos nomes que Didi, com muito afeto, se lembra. Na parede que cerca o interior do bar estão algumas dessas memórias, que são congeladas em matérias de jornais, certificados e fotografias
Um desses registros é justamente o título de Patrimônio Cultural Vivo que, em 2010, Didi recebeu. Apoiada na Lei nº 12.196, de 2 de maio de 2002, a certificação reconhece pessoas ou grupos que exercem função importante na cultura do estado. Didi faz questão de carregar um registro da patrimonialização em sua carteira, pois ele sabe que esse é mais um símbolo de seu papel na cultura pernambucana: “A referência do samba de Pernambuco sou eu”.

Por onde for, quero ser seu par
“Eu tenho 48 anos e frequento há muito tempo”, diz Alexsandra Xavier Barbosa, conhecida como Sandra. “A gente encontra amizade boa aqui, me sinto bem”, conta. Os dois capacetes sobre a mesa que ocupa indicam a companhia da mulher, que veio de moto com o namorado. Os dois, segundo ela, estão em um relacionamento sério há cinco dias. Sandra é precavida. “Ele está pilotando, por isso hoje tá de guaraná e eu quem estou bebendo. A gente tem primeiro que cultivar a vida, porque é o mais importante”, diz, advertindo, “Se beber não dirija, não é?”
Quem também veio em clima de amor foi a chefe de estação, Fátima Melo, 67. Com mais de 30 anos de casada, Fátima frequenta o Pagode do Didi desde que namorava o esposo, Cláudio Melo, que a acompanha na noite. Conheceu o lugar através de um amigo íntimo, Arlindinho, já falecido. Com seu cavaquinho e violão, era Arlindinho um dos músicos que animavam as noite do Pagode do Didi. “Ele vinha tocar aqui e a gente vinha com ele”, explica a chefe de estação.
Beatriz Melo, 25, uma das filhas de Fátima e Cláudio, também os acompanha. “É a primeira vez que venho. É bem tranquilo, bem aconchegante”, diz. A mãe tem a mesma opinião. “Gosto daqui porque a gente fica à vontade. É democrático: aqui tem gente de todo tipo, e todo mundo se dá bem”, comenta.
Outra mulher cuja memória faz presença no Pagode é Sônia Laurentino do Nascimento. “Pensa numa mulher do caramba. A mulher que não precisava de homem para resolver problemas de casa”, comenta Didi, ao lembrar da esposa falecida há 16 anos. Na cozinha, são os temperos dela que continuam dando o sabor aos pratos que um dos filhos do casal prepara. “Ela era a chefona daqui, da cozinha, de tudo”.
A dança, além da música, ajuda a costurar essas relações, fazendo um grande retalho de histórias que passam pelo Pagode. Sandra, animada, se movimenta junto com os compassos dos músicos. Já Fátima, que parece saber todas as canções na ponta da língua, diz que dança pouco. “Eu nunca fui de sambar muito não, porque sempre fui mais tímida. Eu gosto mais de dançar a dois”, diz ela, que há mais de três décadas tem Cláudio como seu par na dança e na vida. Em relação a segurança, Sandra esclarece que se sente segura, “mas tem homem que é muito enxerido, e isso vemos em todos os cantos”.
Virada a madrugada da nossa primeira ida ao Pagode, já estávamos no dia três de agosto, ainda na festa de aniversário, quando o som dos músicos foi interrompido por um estrondo que não combinava nada com toda a celebração. Por volta de 1h da manhã, cinco tiros ceifaram a vida de um jovem no meio da Rua Ulhôa.
O show tem que continuar
“Recife sempre foi carente de segurança. Se tem segurança na cidade, todo o movimento aumenta”, comenta Didi, a respeito da situação do centro da cidade e do acontecimento próximo ao bar. O sambista também conta que já havia solicitado a ronda de uma viatura em 2011, porém não foi atendido. “Um policiamento aqui intimida, mesmo que não seja fixo”.
Católico apostólico romano, ele frequenta, há cerca de 40 anos, a igreja Santo Antônio, localizada em frente à Praça do Diário, e segundo ele, também tem evitado ir à missa aos domingos por causa da violência. “Não dá pra você andar no dia que não tem movimento”, lamenta. Agora é através da transmissão da TV que ele acompanha as cerimônias eucarísticas. Em sua intimidade, também gosta de fazer suas orações, direcionadas aos amigos, família e clientes. “A oração é a coisa mais forte que se tem. Com uma oração bem feita, e com fé, você consegue tudo”.
É com essa fé que o patrimônio continua seu show. Para o futuro, além de esperançar um olhar mais atento do governo sob o estabelecimento, que no mês de julho de 2024 recebeu o título de Patrimônio Imaterial do Recife, o senhor atrás da caixa registradora já nota a nova geração tomando conta do espaço. “O povo jovem é quem ‘tá’ sustentando essa parada”.
Aos 80 anos, apesar de “botar muito novinho no bolso”, como diz, sua rotina não é mais a mesma. Já não vai todo dia ao bar nem toca mais o violão: “me dá uma saudade arretada”, desabafa. Agora, aproveita mais os dias para fazer outras atividades, como acompanhar jogos de futebol e caminhar pela manhã. “Todo dia eu saio da minha casa até o mercado da Madalena. Na volta, eu sento no barzinho de um amigo meu, tomo um ou dois chopes e vou pra casa”.
Enquanto isso, o Pagode do Didi segue com sua história atravessada por música, amor, trabalho, família e amigos. O lugar, que é um pedaço genuíno de um Brasil alegre, persistente e até teimoso, desde o início da reportagem nos fez questionar o seu diferencial em relação a outros bares e rodas de samba. Avaliamos que, na verdade, não há nada de diferente e é justamente isso que o torna mais especial. O Pagode do Didi é o retrato de um Brasil que canta, dança e compartilha saberes enquanto ocupa a rua com festa.