Eternizando o presente, granulando memórias
- Helô Vasconcelos
- 12 de mar.
- 5 min de leitura
Fotografia analógica e o afeto do registro

Se me perguntassem quais são os objetos mais importantes da minha família, certamente incluiria os álbuns fotográficos. São imagens nossas vestindo as primeiras fantasias carnavalescas, nos eventos escolares, com um bocado de brinquedos. Há uma em que estou no colo da minha mãe, com o cabelo preso em dois “pitós”, segurando um garfo cheio de macarrão, na cozinha da primeira casa em que vivi, em Palmares. Diria até que há um excesso fotográfico e presumo que isso tem um pouco a ver com a lacuna de registros na história da minha mãe. Ela é de 1963, veio de uma família pobre e cresceu em um engenho. Por diversas vezes, comentou comigo o desejo de encontrar alguma foto sua de infância. A suspeita é de que sua madrinha - da qual desconhecemos o paradeiro - tinha uma.
Em 2010, quando uma enchente devastadora atingiu a Mata Sul de Pernambuco, eu ainda tinha menos de oito anos. Talvez, por isso, eu tenha demorado tanto para entender porque minha mãe priorizou a segurança das fotos do que dos eletrodomésticos da cozinha, que estavam no primeiro cômodo a ser atingido pela água. Quando que um amontoado de papeis teria valor superior a fogão, geladeira e batedeira? Acontece que fotos são muito mais e, ao contrário dos bens materiais, é quase impossível resgatá-las.
Harrison Full, fotógrafo paraibano, idealizador do Lab Pura Arte - um laboratório de fotografia analógica - também não tem fotos de sua mãe. O conheci através do Instagram, quando procurava por estabelecimentos que ainda trabalhavam com esse tipo de foto. Sentado em seu escritório - um espaço com computador, livros, uma parede com diversas guitarras penduradas, e câmeras mais antigas que o meu bisavô -, compartilhou: “Meu trabalho vai estar sempre envolto numa angústia. Um dos meus maiores arrependimentos é eu, como fotógrafo, não ter feito foto da minha mãe enquanto ela estava viva”.
Rememorando o que passou, ele me mostrou pacientemente as fotos que tirou de sua família, principalmente de seu filho, com o intuito de guardar registros suficientes para que o menino possa recordar seus primeiros anos de vida. Com a destreza de um profissional, fazendo um uso inteligente da tecnologia, digitaliza as imagens e mantém os negativos de praticamente todas as que foram tiradas, como um “cartão de memória”.
Ele começou na fotografia por volta de 2006, como hobby. Embora tenha passado no vestibular para Medicina e acabado cursando Educação Física, escolheu a fotografia como sua profissão. Isso aconteceu no Chile, em 2019, onde a cultura da fotografia analógica é mais presente. Ao voltar para o Brasil, por ainda não ser conhecido no mercado nacional, passou a fotografar com câmeras digitais, usando o analógico como passatempo. Em sua casa, ele mesmo construiu um laboratório para revelar fotos. Um espaço que mais me pareceu uma máquina do tempo, que me levou a uma época na qual eu nem vivi.
As paredes são azuis, há tubulações que parecem estar envoltas em uma espécie de laminado e que fazem a troca de ar da salinha, já que janelas prejudicariam o processo de revelação, porque a entrada da luz queimaria os filmes. O maquinário é 100% das décadas de 70 e 80. Parte dele é importado e fabricado por encomenda. Sinto que desonrei aquele piso ao entrar com um smartphone lançado em 2020, contaminando acidentalmente aquela cena, bagunçando a linha temporal das coisas.
O paraibano, natural de Patos, conta que esse cantinho nasceu para ser o seu refúgio, mas logo pessoas começaram a saber da mágica que acontecia ali dentro. Não demorou muito para que a notícia se espalhasse e, quando viu, Harrison já estava recebendo filmes da Espanha, França, Argentina, de Portugal, e até do Chile e Canadá. Inclusive, é o responsável pela revelação de O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, estrelado por Wagner Moura. Seu sucesso, além do cuidado que o rapaz tem com o material que chega em sua casa, se deve também à técnica que usa. Tudo é revelado manualmente, sem máquinas, assim como era originalmente, e exige bastante dedicação. “Não tem inteligência artificial. Tem inteligência orgânica ali. Eu calculando, prestando atenção, totalmente inserido e dedicado ao filme”, detalha.

Em papel que venceu em 1994 (eu tampouco sabia que papéis têm validade), revelou a figura da avó, Inaura, uma senhora de sorriso simpático, para fins de testes. “Para eu recuperar essa parte do ombro, foram 8 minutos e 24 segundos. Para eu ter o detalhe maior do preto, foram 6 minutos. Para a testa não ficar totalmente preta, como tava aqui, foi 1 minuto e 12. A lente eu deixei na abertura F11. Tem todo um mapinha para sair assim. Para eu conseguir um brilho maior dos olhos, eu tenho que fazer uma máscara do olho”, explica.
O seu talento não veio de um dia para o outro. Em seu escritório, há uma estante cheia de livros da área, em português, espanhol e até inglês. O Youtube também foi seu professor. O que Harrison sabe é fruto de muito estudo, tentativa e erro. “Eu fui praticando e virou minha arte, minha forma de estar presente. A foto que você escolheu fazer, primeiro existe na sua mente, para depois ir pro negativo. Então, você realmente está vivenciando e vivendo no ambiente daquela foto. E você se aceita como é. No digital você pode mudar seu corpo e, às vezes, nem se reconhece mais naquela foto”, comenta.
"Talvez isso aconteça porque as coisas não são mais feitas para durar. Vivemos numa era onde a obsolescência programada não se limita a produtos. Stories duram 24h, feeds são minimalistas e os registros mais antigos são gradualmente apagados. Refleti muito após a nossa conversa e cheguei à conclusão de que estou deixando um montão de nada para as gerações futuras. Harrison explica isso melhor: “Toda a nossa realidade, todas as nossas memórias, estão propícias a se perderem. Nossos pais tinham álbuns de fotografia, discos de vinil, fitas cassete, filmes gravados. E hoje, o que nós temos? Os filmes são online, as fotos são digitais. Você tem o Instagram, o Facebook, mas a qualquer momento alguém pode apagar, igual o Orkut. Estamos fadados a ser esquecidos”, completa.
Preocupado com isso, Harrison deseja que o Lab Pura Arte feche o nicho e se torne, pela sua descrição, o que me parece muito com uma espécie de clube. Além das fotos, envolve vinis, músicas, quadros, proibição de internet e lugares confortáveis para se sentar e ter uma boa conversa sobre os gostos e a vida. Um ambiente de interações reais, sem algoritmos que tirem o prazer de se deparar repentinamente e de forma abrupta com o diferente.
Ainda sobre o futuro, o fotógrafo se mostrou otimista, enfatizou o crescimento do mercado e atribuiu uma função importantíssima para o estilo: o da verdade. Em tempos de “deep fake” e muito photoshop, o analógico não abre margens para edições tão complexas. Além disso, a posse de um negativo é o suficiente para comprovar a autoria das imagens. A fotografia analógica também configura uma forma de se destacar no mercado.
A autenticidade e a profundidade do analógico se contrapõem à efemeridade das imagens digitais. Através das lentes de Harrison Full e das memórias que ele preserva com tanto cuidado, somos lembrados da importância de registrar momentos de forma tangível. Em um mundo onde a superficialidade parece dominar, a dedicação ao analógico representa não apenas uma forma de arte, mas um compromisso com a preservação da realidade em sua essência mais pura. O valor das fotografias vai além do ato de clicar; está na capacidade de capturar e eternizar o que é genuíno e irremediavelmente humano.