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A história que as ruas do Recife não contam

  • Foto do escritor: Letícia Barbosa
    Letícia Barbosa
  • 8 de jun.
  • 10 min de leitura

Os nomes de logradouros da capital pernambucana revelam a persistência em preservar uma memória que invisibiliza mulheres 

Largo Dona Regina. Foto: Guilherme dos Santos/ Coletivo Caburé
Largo Dona Regina. Foto: Guilherme dos Santos/ Coletivo Caburé

Em certa época, me dirigia todas as quartas-feiras à Avenida Governador Agamenon Magalhães. Para chegar lá, passava, antes, pela Rua José Luís da Silveira Barros. No fim do expediente, era o momento de seguir a pé pela Rua Venezuela, até a Rua da Hora. Esta última cortada pela movimentada Avenida Conselheiro Rosa e Silva.


De lá, esperava o ônibus Dois Irmãos/Rui Barbosa, que faz referência a uma das mais importantes avenidas do Recife, a Avenida Rui Barbosa. O transporte público me levava para o meu segundo destino do dia, a Avenida Acadêmico Dr. Hélio Ramos, onde se localiza o Centro de Artes e Comunicação, no campus da Universidade Federal de Pernambuco.


Na volta para casa, era hora de pegar o ônibus que dobrava na Rua Amaro Gomes Poroca, até chegar na Rua Francisco Lacerda, na qual se localiza a Praça Pinto Dâmaso - mais conhecida como Praça da Várzea - e depois seguir seu rumo pela Avenida Afonso Olindense.


Ruas e bairros mais tarde, eu estava no último ônibus do dia, viajando pela Avenida Norte Miguel Arraes de Alencar, que, em 2007, recebeu o nome do ex-governador pernambucano. Dessa avenida, meu percurso terminava numa caminhada até entrar no Largo Dona Regina, no início da grande Nova Descoberta, na zona norte,  onde nasci e morei quase a vida inteira. Dependendo do ponto de vista, ou melhor, de onde se vem, o Largo é quase um portal, uma passagem direta entre a Avenida Norte e o bairro.


De acordo com o geógrafo Dario Galdino, Dona Regina era uma feirante que morava e trabalhava naquele território por volta de 1930. No seu empreendimento, ela vendia alimentos e preparos, principalmente, para cavaleiros que passavam pela região no seu trajeto para buscar madeira nas proximidades. A área era tomada pelo comércio, por ser passagem de trabalhadores e trabalhadoras que seguiam para o expediente na Fábrica Coronel Othon, situada na região que hoje é o bairro da Macaxeira.


O meu caminho até chegar ao logradouro que homenageia a feirante carrega uma semelhança com vários outros país afora. De acordo com um levantamento de 2017 realizado pelo portal de dados Gênero e Número, apenas 20% dos logradouros identificados pelos Correios têm nomes de mulheres. Ao todo, elas aparecem nos topônimos de 108,45 mil avenidas, ruas e bairros de um total de 831,99 mil reconhecidos no Brasil. Pernambuco não foge à regra: no estado, 22,6% dos logradouros têm nome feminino. Já no Recife, a estatística consegue ser ainda menor, são apenas 19,5%.


Enquanto isso, meninas e mulheres atuam com brilhantismo em diferentes esferas da sociedade, mas não são consideradas como parte de uma memória a ser preservada. Iraci Oliveira, 65, não se lembra de frequentar nenhum logradouro que faça referência a essas personalidades. Porém, consegue citar, sem pensar duas vezes, nomes femininos que certamente merecem ocupar esse espaço: “Joana D’Arc, Maria da Penha…”


Dona Iraci, uma das mulheres comerciante da feira do Mercado Público de Nova Descoberta. Foto: Guilherme dos Santos/ Coletivo Caburé
Dona Iraci, uma das mulheres comerciante da feira do Mercado Público de Nova Descoberta. Foto: Guilherme dos Santos/ Coletivo Caburé

E o que isso significa? A nomeação de ruas, bairros, avenidas e praças é um importante instrumento para demarcar memórias. Sendo assim, que memória queremos construir quando a minoria dos logradouros tem nome de mulher? Iraci não é exceção. Doralice, Maria do Carmo, Josiane, Raquel e Cássia também são feirantes de Nova Descoberta e revelam o que pensam em uníssono: mulheres periféricas e batalhadoras são ignoradas na história social do país.


Donas Reginas


O Mercado Público de Nova Descoberta, situado na Avenida Vereador Otacílio Azevedo, é lugar de trabalho de várias mulheres que tiram dali seu sustento. Donas Reginas que constroem a história do país,  mesmo sendo invisibilizadas por quem tem o poder de contá-la.


Josiane Sales de Lima, 49, é moradora da Rua Carlos Mariguela, na Macaxeira. Há quase quatro décadas se dirige todos os dias à feira de Nova Descoberta, para vender toda sorte de hortifruti. Ela conta que foi por volta dos 10 anos de idade que começou suas atividades no comércio. “Minha mãe trabalhava em casa de família e eu queria ajudar. Eu comecei sozinha, quando uns amigos me chamaram para trabalhar. Depois eu mesma comprei os meus bancos de feira”, revela sorridente.


Josiane há 4 décadas trabalha na feira. Foto: Guilherme dos Santos/ Coletivo Caburé
Josiane há 4 décadas trabalha na feira. Foto: Guilherme dos Santos/ Coletivo Caburé

O espaço de trabalho traz para Josi, como gosta de ser chamada, memórias boas e ruins. Por um lado, ela guarda com orgulho o fato de ter sustentado as filhas por meio de seu ofício. “Foi aqui na feira que consegui as minhas coisas, que eu me criei, criei meus filhos, fiz minha família”, declara. Ao mesmo tempo, guarda a lembrança dos dias difíceis de quando a precariedade da infraestrutura da feira causava inundações no espaço e, assim, perda de mercadoria. “ A água dava enchente, levava os nossos bancos, a gente se molhava todinha”, lembra.


Apesar da nova estrutura da feira, o bairro ainda enfrenta esse mesmo problema em períodos chuvosos. A reclamação é fator recorrente nas lembranças das trabalhadoras. É o caso de Doralice Amorim, 67, residente da Rua Luiza, em Nova Descoberta, que desabafa: “as coisas tristes aqui são as enchentes, quando chove, fica tudo alagado. Lá onde a gente trabalhava, a água já deu aqui na minha perna, perdi produto”. Assim como Josi, Doralice recorda a batalha vencida no trabalho para prover a família. “Memória boa que eu tenho aqui é que criei meus filhos na feira,e todos são cidadãos, quatro cidadãos”, reflete. Ela conta também que dois dos filhos trabalham hoje no mesmo local, bem como um dos netos.


Doralice vende produtos diversos em seu banco na feira. Foto: Guilherme dos Santos/ Coletivo Caburé
Doralice vende produtos diversos em seu banco na feira. Foto: Guilherme dos Santos/ Coletivo Caburé

Nascida em Goianinha, no Rio Grande do Norte, Doralice chega ao Recife criança e já aos 12 anos perde a mãe. O ocorrido a levou de volta à sua cidade natal, mas logo retornou à capital pernambucana dois anos depois. Sua história na feira começou junto com o pai e os três irmãos. “Meu pai já negociava em outra feira, no Córrego da Areia. Do Córrego da Areia, a gente foi ali para o Centro Comercial e daí veio para aqui, e está aqui até agora”, relata. Além dela e de seus dois filhos, um de seus irmãos ainda trabalha na feira, mas como segurança.


Maria do Carmo se criou na feira. Seus dois filhos também. Foto: Guilherme dos Santos/ Coletivo Caburé
Maria do Carmo se criou na feira. Seus dois filhos também. Foto: Guilherme dos Santos/ Coletivo Caburé

A feira de Nova Descoberta, ao longo do tempo, se renovou, tanto pela mudança de espaço para fugir dos impactos de sol e chuva, quanto pelas pessoas que ali labutam diariamente. Se por um lado, filhas e filhos, netos e netas vão ocupando o lugar dos seus familiares, há também pessoas como Raquel Santos da Silva, 19, residente da Rua Sempre Livre, no bairro do Passarinho, que é feirante contratada. A mais jovem das entrevistadas não tem sua própria barraca na feira. O mesmo caso de sua amiga, e vizinha de ponto, Cássia Maria Ferreira, que não quis dar entrevista, mas colaborou animada com a resposta da colega a todo tempo.


"Me chamaram e eu queria dinheiro, então eu vim", conta Raquel. Foto: Guilherme dos Santos/ Coletivo Caburé
"Me chamaram e eu queria dinheiro, então eu vim", conta Raquel. Foto: Guilherme dos Santos/ Coletivo Caburé

Raquel explica que já frequentava a feira como consumidora e não tinha intenção de trabalhar na área, mas diante da necessidade, resolveu se arriscar e percebeu como é habilidosa no comércio. "Me chamaram e eu queria dinheiro, então eu vim. Eu gosto e já estou aqui há um ano”, explica. A conversa com as jovens é fluida e no decorrer da entrevista surge o debate: “Cruz Cabugá é nome de um homem? Rui Barbosa também foi um homem que existiu? E 21 de Julho é nome de homem também? Josélia não é nome de homem não, né?”


Raquel analisa que nunca havia pensado sobre a origem dos nomes de logradouros, mas reflete que ao enumerar as ruas e avenidas que conhece, a maioria tem nomes de figuras masculinas ou nomenclaturas neutras. Quando perguntadas sobre o tema, ela e Cássia entram em um breve momento de investigação acerca dos nomes que se lembram e que não faziam ideia do significado.


Sobre isso, Raquel tem opinião formada. “Acho um machismo. Tem nome só de homem, eu acho que devia ter de mulher também. Imagina uma rua com nome  Cássia, Cássia Maria, melhor do que Rui Barbosa”, avalia, convocando a amiga para o debate. Continua defendendo que mais mulheres sejam lembradas pelo batismo de logradouros. Para ela, os nomes masculinos que colocaram nas ruas são homenagens a feitos de homens. “Então, acho que deveria ter mais espaço para as mulheres que fazem algo do tipo serem homenageadas dessa forma também”, analisa, afirmando ainda que “se tivesse mais ruas com nomes de mulheres, elas seriam lembradas”. 


Apesar da diferença de idade e de trajetória com suas colegas de trabalho, a perspectiva de Raquel é unânime entre as entrevistadas, conforme ouvimos de banca em banca. Josi, surpresa ao ouvir falar de Dona Regina, feirante de Nova Descoberta como ela, pontua que “é muito importante saber a história das coisas. Sempre tem alguma coisa por trás; o nome da mulher tem que ser visto”.


Maria do Carmo comenta que não acha que tem a ver com preconceito, mas concorda que mais mulheres deveriam ser homenageadas nas cidades, já que existem “muitas guerreiras”, como Dona Regina e como ela mesma. Para Doralice, a única que mora em uma rua que referencia um nome feminino, a Rua Luíza, a visão se volta para o presente. “Mulher hoje sempre está ganhando em tudo. As mulheres eram sempre botadas para trás, coitadas. Agora não, as mulheres estão botando pra quebrar”, comemora.


Qual memória preservamos? 


A toponímia brasileira evidencia o quadro de desigualdades de gênero que atingem o país. A memória não escapou a esta influência. Rua Amélia, Rua Deputada Cristina Tavares, Rua Ana Nery, Rua Poetisa Auta de Souza, Rua Anne Frank, Rua Bárbara Heliodora e Rua Princesa Izabel, esses são alguns exemplos de homenagens a mulheres nas ruas recifenses por seus feitos. 


Segundo dados da Gênero e Número, contudo, é comum que mulheres sejam referenciadas nos logradouros devido a associação com homens de poder, como a Viscondessa do Livramento, cuja rua em sua homenagem localiza-se no Derby, região central do Recife, e a Baronesa de Palmares, que nomeia uma rua em Boa Viagem, na zona sul da capital pernambucana.  


Uma pesquisa da Secretaria de Direitos Humanos e Segurança Cidadã, em parceria com a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, de 2012, revelou que, na época, dos 561 logradouros com nomes femininos do Recife, 28 se referiam a professoras e 14 a cantoras.


A jornalista e deputada Cristina Tavares também é uma exceção. De acordo com o Gênero e Número, ela é a única mulher da política que tem uma rua com seu nome na cidade, ao passo que deputados, governadores e senadores homens recebem homenagens em logradouros a todo tempo. Fato rapidamente percebido ao tentarmos identificar quantos estabelecimentos, praças e avenidas recebem o nome do famoso ex-governador de Pernambuco que foi deposto no deflagramento do golpe militar em 1964. 


 Aliás, por falar dessa época de supressão democrática vivido pelo Brasil, uma investigação da Agência Pública contabilizou que Pernambuco tem cerca de 22 quilômetros entre ruas e avenidas com nomes de agentes da Ditadura Militar, enquanto tem apenas 2,3 quilômetros reverenciando as vítimas. Este número poderia ser facilmente ampliado se somado aos quilômetros dedicados a escravocratas, que até hoje são reverenciados em diferentes territórios, inclusive os periféricos e ocupados majoritariamente por pessoas negras. 


Evocação de qual Recife? 


O debate sobre os nomes de espaços públicos ou instituições não é novo. Manuel Bandeira já se preocupava, em 1925, com a substituição dos nomes poéticos das ruas de sua infância por nomes de homens de poder no estado. No entanto, é com base nesse saudosismo que pesquisadores de diferentes campos defendem que nomes de logradouros não devem ser alterados, sob risco de prejuízo à identidade de um território. 


A Lei Municipal nº 1223, de 1951, estabelece que os nomes logradouros públicos já consagrados pelo uso do povo devem ser mantidos, e se possível, até restaurados, a partir de consulta ao Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP). 


Entretanto, conforme estudo de Leonardo Dantas, escritor e jornalista dedicado à história do Recife, até 2021, 1.487 nomes de ruas foram alterados, ainda que só oficialmente, sem a adoção da população local. As alterações, por sua vez, acontecem para homenagear personalidades de grande destaque na política do estado, desde que sejam homens, como é possível perceber nos dados apontados ao longo desta reportagem. 


Para a historiadora e fundadora do coletivo “Casa Amarela é o Bairro”, Pollyana Calado, esse cenário é ainda mais complexo. Para ela, a questão de gênero soma-se à de classe, à de raça e até à de posicionamento político. “A memória é lugar de disputa e a gente precisa reivindicá-la. Os homens são os que têm as memórias privilegiadas, mas a gente não tem, por exemplo, Padre Reginaldo Veloso. A gente não tem Nelson Poeta nomeando logradouros, imagina as mulheres. Se a gente não tem esses homens, se existe um silenciamento até dos homens, as mulheres são apagadas”, argumenta ao citar lideranças masculinas importantes para os territórios adjacentes à Nova Descoberta. 


Pollyana menciona ainda como o batismo de algumas ruas, principalmente, nas periferias recifenses, representou um processo de apagamento de identidade. É o caso de espaços nomeados com numerais ou letras. Ela explica que, nesses locais, o que é comum de acontecer é a chegada de equipamentos de urbanização, como sistema de água e esgoto, e com isso a necessidade de dar um nome para registrar. “Isso é uma forma de não individualizar, de não personificar, de  criar um não lugar”, argumenta.


Outra medida é nomear o espaço em referência ao engenheiro que o projetou ou realizou alguma obra pontual, por exemplo, ou mesmo às suas filhas e filhos que jamais pisariam naqueles territórios. Na perspectiva de Pollyana, o processo de nomeação de logradouros é questionável e, nesses casos, passível de mudanças.


“Se eu tenho uma caneta que é patrimônio, ela nasceu para escrever e não para esse fim. Quando a gente patrimonializa, ela deixa de escrever e vira um símbolo, que fala sobre a memória de quem a produziu, a pensou ou de um grupo que escreveu com ela. O que quero dizer é que essas ruas, esses nomes, são construídos intencionalmente para representar grupos, e a gente precisa questionar quem está sendo representado por eles. Sobretudo quando se trata de uma coisa muito sensível que é o nosso território, porque esses símbolos são o que a gente tem que utilizar como defesa do nosso lugar”, defende a historiadora.


Para a pesquisadora, que trabalha atualmente com tombamento de patrimônios, homenagear, preservar e selecionar elementos de representatividade de um povo ou território faz parte de uma construção social.


“Esses nomes são construídos intencionalmente para representar grupos, e a gente precisa questionar quem está sendo representado por eles. Para além dessa coisa de comemoração de herança, isso é um instrumento político e com o qual eu luto pelo meu território, pelo meu direito de estar e de viver na cidade.


"Um território que representa quem o ocupou, quem nele resistiu para sobreviver, deve receber nomes de terceiros, de opressores? Que memória está sendo preservada? Então, eu acho sim, que tem que reivindicar todos esses nomes, tem que retirar todos os nomes e tem que pensar em novos protagonistas que realmente representem aquela parcela da população”.


Assim como Iraci, Raquel e a própria Pollyana que têm nomes na ponta da língua para batizar e até substituir os nomes de ruas Recife a fora, eu, Letícia Barbosa, moradora do Largo Dona Regina, consigo pensar também em personalidades que devem ter a memória enaltecida. 


Lenira Carvalho, fundadora do Sindicato das Domésticas em Pernambuco; e Lourdes Luna, assistente social e fundadora do Grupo Mulher Maravilha, uma das organizações mais importantes de Nova Descoberta e que foi forte resistência no período da Ditadura Militar, são algumas delas. Mulheres como a feirante Dona Regina não faltam para serem celebradas em nomes de logradouros, mas são desconsideradas por quem tem o poder de decidir que memória deve ser preservada.




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