Muito além dos lanches: a trajetória de Gildo no Recife
- Thales Martins
- 12 de mar.
- 5 min de leitura
Gildo conta a sua história de vida até se tornar uma personalidade marcante na cidade
No coração da movimentada Praça do Derby, no centro de Recife, um nome se destaca: Gildo Lanches. Aos 58 anos, Gildo Gonçalves de Souza é uma figura respeitada e querida por todos que passam por seu caminho. O seu estabelecimento é famoso por funcionar de domingo a domingo, das 16h30 até as primeiras horas da manhã, sendo o destino certo para quem vai ou volta de festas e para aqueles que trabalham na madrugada. Com uma grande variedade de lanches de ótima qualidade e a preços acessíveis, Gildo atrai uma clientela diversificada, abrangendo pessoas de todas as classes sociais.
Sempre com um sorriso no rosto e uma abordagem acolhedora, Gildo diverte seus clientes com carisma, honestidade, educação e um senso de humor contagiante, qualidades que o tornam um dos personagens mais admirados da cidade. Famoso, já recebeu visitas de diversas personalidades, desde políticos, como o prefeito João Campos e a governadora Raquel Lyra, a artistas, como o humorista Whindersson Nunes e o cantor João Gomes. Este último, inclusive convidou Gildo para fornecer lanches à equipe que trabalhou na produção de seu DVD, gravado em agosto de 2022 no Marco Zero.
Além de sua popularidade, Gildo é conhecido por suas ações sociais. Durante o desastre ambiental do derramamento de óleo nas praias do Nordeste,em 2019, ele demonstrou solidariedade ao enviar lanches aos voluntários que trabalharam na limpeza das praias afetadas em Pernambuco. Também tem o hábito de entregar lanches a pessoas em situação de vulnerabilidade sempre que possível, reforçando seu compromisso com a comunidade.
De vigilante a empreendedor
Nascido e criado no bairro da Iputinga, zona oeste do Recife, Gildo viveu um período em São Lourenço da Mata, Região Metropolitana do Recife, mas foi na capital pernambucana que ele encontrou seu verdadeiro lar. Antes de ingressar no ramo dos lanches, o empreendedor trilhou diversos caminhos. Desde a infância, trabalhou como comerciante, vendendo tapioca para ajudar a família e, mais tarde, chegou a tentar carreira no exército, mas não conseguiu ficar, acabando por se tornar vigilante, profissão que exerceu por 15 anos.
Após uma demissão em massa, deixou a empresa de segurança junto com 150 colegas e seguiu em busca de alternativas para sustentar a família. Isso o levou a assumir diversos empregos informais, como pintor de casas e ajudante de pedreiro, por exemplo. “Como eu não tive a oportunidade de estudar muito, porque precisei trabalhar desde pequeno para criar meus irmãos, foi difícil encontrar outro emprego fixo. A única coisa que me restava era o comércio, que é o que eu sei fazer desde sempre ", relembra Gildo, deixando transparecer muito orgulho em relação à sua trajetória.
Dois comidos, um bebido e o fecha
A falta de oportunidades formais de emprego não impediu Gildo de persistir, até que seu irmão o convidou para trabalhar fornecendo almoço em obras de construção para um homem chamado André "Cabeça", que dirigia o restaurante "Castelo Refeições" no bairro da Torre. O ex-vigilante aceitou o desafio e começou a trabalhar nesse estabelecimento, entregando almoço e jantar para operários. Com o tempo, André decidiu incluir lanches em seu cardápio, e Gildo enxergou uma oportunidade. Utilizando uma indenização que havia recebido na época, ele adquiriu uma bicicleta, na qual instalou duas caixas de isopor repletas de lanches e foi para a rua vender. Nesse momento, Fabíola, esposa de André, o batizou de Gildo Lanches.

O início no ramo dos lanches não foi fácil. Gildo recorda do seu primeiro dia de vendas, quando conseguiu vender somente uma coxinha a um vigia. “Foi um desastre, foi num domingo, à meia noite. Enchi os isopores de lanche e suco e saí pela Torre, fui percorrendo a Praça da Jaqueira, mas não oferecia o lanche. Como é que alguém ia saber que eu estava vendendo? As ruas estavam um deserto danado, eu pensei que a turma me chamaria, continuei fazendo meu caminho pelo Derby e não vendi nada. Até que quando chego na frente do Clube Internacional, o vigilante me chamou e comprou uma coxinha com um dinheiro muito grande, eu não tinha troco. Acabei falando para ele me dar o dinheiro depois, fui embora e quando cheguei em casa para não ter prejuízo dei os lanches que sobraram para umas pessoas em situação de rua que estavam por perto ", comenta.
Após essa experiência, o comerciante percebeu que o período da manhã era mais propício para as vendas, e começou a percorrer a cidade com a sua bicicleta, atendendo postos de gasolina, condomínios, hospitais, o Batalhão de Choque de Recife, a Faculdade Santa Helena, na zona oeste da cidade, e visitando diversos outros bairros. Seu cardápio consistia, inicialmente, em lanches, como coxinha, rocambole, pão-pizza e empada, além de refrigerantes e sucos para acompanhar.
À medida que o seu negócio foi se expandindo, a variedade do cardápio cresceu tanto que ele brinca: "Tem hora que eu não sei nem o que eu tô vendendo mais, porque é tanta variedade". Além dos lanches tradicionais, Gildo adicionou itens como temaki de frango, coxinha de ovo, pizza, kibe, hambúrguer artesanal, espetinho e muitos outros.
O que realmente o diferencia é sua icônica jaqueta militar, que utiliza até hoje e que, segundo ele, "é igual espinafre: quando eu boto, tenho a força do Popeye”. Essa jaqueta não só o protegia do frio, mas também servia para guardar o dinheiro do troco. Além disso, seus bordões bem-humorados, como “Causa ganha”, "QAP", "QRV", “QSL”, "Tô te vendo daqui" e "Dois comido, um bebido e o fecha", se tornaram a sua marca registrada.
Com o tempo, as suas vendas prosperaram e o ex-vigilante teve que buscar mais fornecedores de lanches para revender, além de ter um número de celular por meio do qual os clientes faziam os pedidos. Ele trocou novamente o horário das vendas e voltou a comercializar à noite, por considerar que nesse horário havia uma brecha de mercado e para escapar do “sol quente” recifense. Sem muita concorrência nas madrugadas conseguiu se popularizar cada vez mais na região. Conforme a sua fama crescia, ele estabeleceu um local fixo na praça do Derby, com uma barraca, tornando-se um ponto de encontro famoso na cidade para pessoas que saíam de festas, bem como policiais, bombeiros, taxistas e vigilantes.
“Quando eu cheguei o Derby ficou marcado, aqui é um local onde as amizades se encontram.” - Gildo Gonçalves de Souza
Nova sede e planos para o futuro
Durante a pandemia de COVID-19, o negócio de Gildo foi duramente afetado, mas ele foi resiliente. Diante das dificuldades, conseguiu alugar um espaço em frente à Praça do Derby, oferecendo agora mais conforto e segurança para os clientes. Antes, vender lanches na própria praça, ao relento, trazia desafios, como a insegurança, o medo de assaltos e o clima instável, especialmente em dias de chuva. Com o novo espaço, Gildo conseguiu superar esses obstáculos e oferecer um atendimento de maior qualidade.
Sobre o futuro de seu empreendimento, ele é sincero e até brinca: "Eu tô igual àquela música 'Deixa a vida me levar', mas é claro, já estou me aproximando dos 60 anos. Até me aposentar, cabe aos meus filhos assumirem a lanchonete. Por enquanto, estou levando tudo do jeito que Deus quiser, mas espero melhorar ainda mais o negócio.”
O empreendedor revela ainda que, “algumas ideias estão surgindo, estamos tendo reuniões para discutir o futuro, inclusive sobre a possibilidade de criar franquias. Já tem gente me pedindo para abrir em lugares como São Lourenço, Olinda e Boa Viagem”. O crescimento da marca também é evidente nas redes sociais, onde Gildo já acumula mais de 100 mil seguidores no Instagram, fortalecendo sua conexão com o público e atraindo novos clientes.
O Gildo Lanches vai além de uma lanchonete popular, tornou-se um verdadeiro espaço de memória afetiva para muitas pessoas da cidade. Entre “um comido e um bebido”, histórias são compartilhadas, amizades se formam e diferentes gerações se conectam. Cada cliente que se aproxima não encontra apenas um excelente lanche, mas também o bom humor e a receptividade dessa figura que conquistou o coração de todo mundo.