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  • Foto do escritorLaysa Vitória

Os casamentos de Dona Neguinha

O custo alto do patriarcado na vida da mulher


Quando vi Neguinha pela primeira vez eu era uma criança. Ela mora próximo à casa da minha tia-avó Maria, no sítio pinhões, na cidade de Surubim . O marido, para mim, era só um nome: Mané Zumba, não tinha visto o seu rosto, pelo menos até então. Quando estava no sítio de minha tia, escutei várias vezes o esposo dela falar: - Lia, vou lá na venda de Mané. E quando caía a noite todos os homens iam jogar dominó na tal casa de Zumba. Neguinha nunca era lembrada nem falada.


O contato mais próximo que tive com Neguinha foi em uma viagem que minha família fez para Juazeiro do Norte (CE), juntamente com ela, uma de suas filhas e outras pessoas. Dessa viagem tenho lembranças vagas, afinal era uma criança de seis anos. Mas sobre Neguinha, nada lembro, só uma distante imagem de sua fisionomia. Contudo, não esperava que a história daquela mulher, aparentemente pouco marcante, iria me atravessar. Pois Neguinha, que também é Helena, poderia ser a décima protagonista de Manoel Carlos.


Minha memória foi revisitar Neguinha em 2021 quando escutei vó falar - Neguinha vai se casar! A primeira reação foi curiosidade - Mas o marido dela não é Mané Zumba? Questionei.


Confissão negada


Milhares de pessoas embaixo do sol intenso do agreste pernambucano. O que mantém os fiéis firmes na espera é a fé no Frei Damião. Em dia de romaria para ver o religioso o tumulto e entusiasmo eram grandes, não foi diferente com Helena e Manoel Miguel ou Neguinha e Mané Zumba. O dia começou cedo na casa deles, afinal, a Toyota partiria no início da manhã rumo à cidade de João Alfredo (PE) onde estaria o Frei. O missionário que faleceu em 1997, aos 98 anos, realizava diversas missões por todo o Nordeste e tinha fama de milagreiro. Nos locais de peregrinação, realizava a santa missa, o atendimento às confissões, os sermões e as visitas aos doentes e encarcerados. Na fila, que não era possível ver o fim, estavam Helena e Manoel Miguel, que desejavam se confessar e ouvir os conselhos do Frei Damião.


Após horas de espera e ansiedade, é chegada a hora de Helena. Ela era a próxima da fila. Mas o encontro com o considerado santo do sertão nordestino não foi de longe como esperado. Helena não poderia se confessar, estava em pecado. A igreja não aceita um casal amancebado, ou seja, pessoas que vivem juntos sem ter um casamento religioso. A mulher não chegou a contar sua situação matrimonial para o religioso, mas o frei soube do status de Manoel e Helena assim que a viu, conta Marlene Arruda, amiga do casal.


O sonho


Em abril de 2021, Helena, 76 anos, e Manoel, 78 anos, se uniram religiosamente na pequena capela de Nossa Senhora da Conceição, localizada no sítio Pinhões, município de Surubim (PE). O casamento ocorreu em um momento crítico da pandemia, mas acima do medo da contaminação por Covid-19, estava o tempo. O casal idoso queria oficializar a união com Deus antes da chegada da morte. As palavras de Frei Damião e a religiosidade de Helena estavam fixas na cabeça da mulher que contava impaciente o tempo para entrar novamente na igreja vestida de noiva. “Tava feliz, porque ia casar. Deus nos protegeu e conseguimos. Nosso matrimônio foi um exemplo para os netos”, conta Neguinha sobre o dia.


Paixão de juventude


Neguinha conheceu Mané Zumba aos 26 anos. Ela morava com os pais, mas de noite ia dormir na casa da avó e costumava frequentar uma pequena mercearia no sítio do Gangungos, em Surubim (PE). O dono do comércio era o outro também jovem de 28 anos e recém-chegado à localidade, Mané Zumba. Toda vez que Helena ia com a avó ou sozinha na pequena venda, os dois jovens conversavam e se conheciam melhor. Helena morava desde que nasceu naquele sítio, mas Manoel não, ele havia saído da casa dos seus pais em busca da independência. Os dois se apaixonaram, mas Neguinha já estava de casamento arranjado com outro.


O pai de Helena era considerado uma pessoa de boa condição financeira, tinha terras e criava gados, enquanto Manoel nasceu em uma família pobre. Na época, anos 70, o comum era os casamentos serem arranjados pelas famílias. O pai da jovem acertou o casamento da filha com um moço da localidade e pagou toda a festa. Contudo, Helena não queria se casar com o escolhido pela família, o coração da jovem pulsava mais forte por Manoel Miguel. Mas, as mulheres não tinham poder de escolha, sendo assim, o casamento forçado ocorreu perante a Deus e a comunidade.


Fuga


Depois de mais ou menos um mês de casada, o matrimônio de fachada foi desfeito, “não gostava dele”, relata a mulher. Mané Zumba tentou um acordo com o pai de Neguinha e pediu a mão dela, mas o patriarca não gostou da proposta. Com a negativa, o casal arquitetou o único plano possível: a fuga. Assim foi feito, Helena foi morar na casa de Manoel. O escândalo tomou conta da comunidade, só se falava do ocorrido. Mesmo contrariando o patriarca, Neguinha afirma que após um tempo tudo se acertou com a família.


As regras da igreja católica não seguem as dinâmicas e complexidades dos relacionamentos na vida real. O prometo amar-te e respeitar-te na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias da vida de Neguinha não estavam endereçadas ao homem que estava ao lado dela no dia do casamento, mas ao jovem Manoel. Contudo, a aliança na igreja não pode ser desfeita antes do “a morte nos separe”, mesmo que o juramento seja falso. Por isso, Helena e Manoel só poderiam se unir depois do falecimento do primeiro marido dela.


Assim como Helena, o primeiro marido formou outra família. Assim que ocorreu o falecimento do ex, Neguinha foi informada. Então, os filhos da mulher procuraram os parentes do homem para pedir a certidão de óbito, que seria o passaporte de Helena para realizar o sonho de se casar na igreja com Mané Zumba. Felizmente, a família do falecido foi solícita e cedeu o documento.


Depois de 50 anos juntos e apenas com o casamento civil no ano de 1971, Neguinha entra de vestido rosa claro e longo na capela de braços dados com um dos nove netos do casal. Dessa vez, por livre e espontânea vontade. “Tudo tem o dia certo”, conta Helena sobre os anos de espera por aquele momento. Entretanto, as escolhas do dia idealizado não foram feitas por Neguinha, o tecido do vestido da noiva quem escolheu foi Mané Zumba e a celebração que ocorreu na casa deles foi organizada pela filha Cleonice.



O machismo não se esconde


Quando a casa de alpendre surge, visualizo Neguinha com sua fisionomia delicada, cabelos grisalhos e a pele clara com as marcas do tempo, sentada em uma cadeira de balanço. Por coincidência, quem aparece também é Mané Zumba, foi a primeira vez que o nome ganhou rosto, estava voltando do roçado e carregava um jerimum nas mãos. O marido também participaria da entrevista. Não tinha o contato do casal nem de nenhum de seus familiares, por isso a forma que encontrei para falar com Helena foi através do meu primo, que mora próximo. Ele foi até a casa de Neguinha, a mulher aceitou, com uma condição, que Mané também concordasse.


Helena e Manoel Miguel atualmente têm 78 e 80 anos, respectivamente, 52 anos juntos e dois de casados. Tiveram 12 filhos, mas só sete se criaram, 9 netos e 4 bisnetos. Sobre os anos de convivência, Mané Zumba fala com orgulho. “A pessoa tem que saber viver, porque precisa entrar em assunto que dê certo e fazer as coisas juntos. Desde que estou com Neguinha, ela nunca fez uma feira. O que ela fez foi tomar conta da casa e criar galinha, enquanto fiquei batalhando, fazendo feira, negociando e comprando terra. Um tomava conta de uma coisa e outro tomava conta da outra”, explica o homem e Neguinha concorda. “O casal tem que pegar o rumo certo no começo e ir até o fim. Começamos a vida sem nada. Ela não tinha as coisas, quem possuía era o pai. E minha família também não era dona de nada”, complementa Mané. O casal se manteve através da pequena venda, da agricultura e criação de gado. Atualmente, ambos estão aposentados, mas continuam com a mercearia em casa.


O casal é simpático, mas a entrevista foi incômoda, Neguinha parecia desconfortável, enquanto Mané Zumba falava com espontaneidade. Gostaria de ter conversado apenas com a mulher, infelizmente não foi possível. A ideia era que ela contasse a própria história, entretanto não olhava nos meus olhos e com a cabeça baixa sempre respondia às perguntas com frases curtas. Apesar da minha insistência, a mulher continuava sempre à sombra das respostas de Manoel Miguel. A parte mais silenciosa foi também a mais delicada, a pergunta sobre o primeiro relacionamento de neguinha. A mulher respondeu brevemente que o relacionamento não deu certo. Ao final da entrevista, quando Manoel se afastou, neguinha questionou


-Você já fez bastante perguntas. Terminou?

-Sim, a senhora gostaria de acrescentar algo?

-Não, acho que já esqueci - respondeu enquanto coçava rapidamente a cabeça e virava o rosto para o lado.


Não encontrei a história, nem quem estava procurando. Na verdade, era Ela, mas não a Neguinha que idealizei. Quando minha avó contou a história de Helena, passei dois anos imaginando uma mulher à frente do seu tempo, que não se importava com os julgamentos alheios. Uma Helena decidida, forte, que não se esconde, fala por si só e dona de suas próprias escolhas. Não a julgo, muito menos a culpo. Eu que criei uma personagem para satisfazer as minhas ideologias e idealismo. Entretanto, quem entrevistei, de verdade, foi uma mulher tímida, que se distrai facilmente com a gata Bianca, e que sempre concorda com o marido. Imaginei Helena como protagonista, mas quem escreveu a história foi Manoel.


Procurava uma linda história de amor, mas não esperava e nem estava preparada para os dissabores. Esperei perfeição, mas no meio do caminho descobri as pequenas sutilezas do machismo. Aguardei a superação do patriarcado, mas ele continua nos detalhes da história de Neguinha e Manoel Zumba. É um casamento com muitas camadas, o respeito é uma palavra frequente no vocabulário dos dois, mas o machismo não permite que Helena seja tudo o que poderia ser. É uma história que ensina, mas também faz refletir sobre como a mulher ainda sofre com o patriarcalismo. Pois Helena desrespeitou as ordens do pai e seguiu o coração, mas entrou num relacionamento, em que é mané que dá a palavra final.





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