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  • Foto do escritorGuilherme dos Santos

História de sereias e vampiros brasileiros: a mulher que recicla o mar

Rosa Campello utiliza aquilo que encontra no mar para fazer as suas obras.



Rosa Campello em sua barraca na feira da Reforma Agrária (Foto: Guilherme dos Santos)


Quem vai à feira da reforma agrária no Armazém do Campo em Recife, que acontece todo sábado, certamente já a viu vendendo seus produtos artesanais. A história de Rosa Campello, de 65 anos, poderia ser mais uma dessas narrativas fantásticas, com seres surpreendentes vindos de outro mundo.


Ativista, apoiadora do Greenpeace e catadora de lixo, Rosa é uma mulher que utiliza aquilo que encontra no mar como matéria prima de suas obras. Terrários, esculturas, cangas, telas e jóias nascem a partir da sua criatividade e do seu olhar sensível àquilo que muitas vezes passa despercebido por outras pessoas: o lixo. Assim como uma sereia, a água parece ser o habitat natural para a mulher que recicla o mar. Diferente da criatura, no entanto, nada ela atrai para o oceano, além de si mesma. No lugar de escamas e caldas, Rosa utiliza sua máscara de mergulho e duas varas, uma para pegar lixo e outra para pegar metais, e, desse modo, vai garimpando e limpando o ambiente à sua volta.


Natural de Olinda, Rosa Campello é moradora de Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana de Recife, e não poderia residir em outro local, se não na beira da praia. Perto da famosa igreja de Nossa Senhora de Piedade, conhecida como “Igrejinha”, onde trechos estão interditados por conta de ataques de tubarão, é onde é possível encontrá-la, inconfundível com seus cabelos médios grisalhos e sorrisos gratuitos. Também é lá que ela rega os coqueiros da orla em frente a sua casa todas as manhãs, e toma a liberdade de mergulhar – em área permitida – para fazer a sua pescaria particular.


(Na orla de Piedade, ao longe é possível ver Rosa Campello com suas duas varas usadas na coleta dos lixos. Neste dia acontecia o fenômeno da lua azul.) Imagem: Guilherme dos Santos.

No seu apartamento, além de Rosa, outras vidas ganham espaço no ambiente cercado de suas produções. Tomate, pimenta e manjericão são inquilinos em sua varanda, e vivem nos terrários feitos pela mulher. Os quadros e esculturas produzidos por ela estão em cada canto e parede da residência, os quais Rosa mostra com muito orgulho. Um deles em especial é o que foi autografado pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva em 2019. Feita em 2017 para as comemorações da revolução de 1877, a tela foi exposta no Museu da Cidade do Recife.


Rosa segura a tela autografada pelo presidente Lula em 2019. No fundo, uma bandeira do presidente está posta. (Imagens: Guilherme dos Santos)

A luz que ilumina a varanda de seu apartamento vem da vista que dá direto para o horizonte litorâneo, a qual Rosa admira desde a infância. “Era bem diferente, o mar”, conta, relembrando da paisagem que outrora dava lugar a outras cores e outros personagens. A água, como ela cita, era mais verde, com um tom esmeralda. Botos, baleias e golfinhos eram fáceis de serem vistos corriqueiramente daquela mesma varanda. Era possível sentir os sinais da chegada deles. O cheiro forte de peixe e o deslocamento da água significava que eles estavam por perto. “A gente sente. Eles investigam você antes de se aproximar”, conta Rosa, que hoje só consegue ver o Tubarão Tigre, conhecido pelos ataques ocorridos neste ano.


O perigo e restrições que cercam os banhistas hoje não existem nas memórias de Rosa. “Quando criança, a nossa brincadeira preferida era passar o dia na praia”, conta ela ao lembrar como adorava aproveitar as horas frente ao mar com os quatro irmãos. “Enchia o saco da minha mãe. Ela nem sempre podia deixar seus cinco filhos brincarem, afinal tínhamos escola. Imagina levar cinco filhos todos os dias à praia?”.


Com o pai, Sebastião Campello, foi com quem as cinco crianças aprenderam a nadar. “Ele ficava no fundo, e tínhamos que ir, um por um, até ele. Deveríamos rodeá-lo, sem tocar nele. Era uma competição”. Ela lamenta toda mudança no meio ambiente, e responde com obviedade, quando perguntada, que não poderia começar seus trabalhos com a reciclagem na sua infância. “Não tinha lixo quando eu era criança”, e completa com pesar: “É uma pena que destruíram tanto, e o mundo inteiro está assim: uma sopa de plástico”.


O início de suas atividades com a reciclagem, na verdade, aconteceu em 2015, quando começou a trabalhar no Museu da Cidade do Recife. Lá, Rosa ministrava aulas de reciclagem de materiais, produzia mamulengos e aquarela com pigmentos naturais, além de hortas urbanas, que incluíam a reciclagem de vidros e desenvolvimento de terrários.


Foi em 2016, no entanto, que a mulher sofreu um golpe, quando o Brasil passava por um momento conturbado, a partir do impeachment que a ex-presidente Dilma Rousseff havia sofrido no início do ano, e a tomada de posse de Michel Temer à presidência. Um dia, quando não estava em horário de expediente, Rosa, como a ativista que é, foi ao museu com uma bolsa estampada “Fora Temer”. A atitude não agradou a diretora do lugar, que pediu para ela tirar o acessório, ou se retirar do estabelecimento. “Quem é você na fila do pão para mandar eu tirar meu “Fora Temer” ?”, indagou Rosa, que ri ao contar a história. Nesse instante, o “Fora Rosa” aconteceu, e aquele foi o último dia que a mulher pisou no museu. Ela não se arrependeu, e continua com a sua bolsa e com seu maior ato político: ser ela mesma.


Mesmo não havendo nenhum pesar pela saída, Rosa lamenta a situação: “Sinto falta de trabalhar num lugar tão lindo e cheio de conhecimento”. Além de dar aula, ela também vendia seus produtos reciclados, por isso sofreu pelas suas rendas perdidas. “Vou cobrar tudo de Temer”, diz, sorrindo, como se planejasse seu próprio dia D. “É tudo culpa daquele vampiro brasileiro”.


Desempregada, sua reação foi continuar com suas atividades. Hoje Rosa vende suas produções por meio das redes sociais e na feira da reforma agrária que acontece no Armazém do Campo, no bairro de Santo Antônio, área central do Recife. O lugar é bem quisto por ela: “Além de tudo, ainda faço minha feira, como uma feijoada. É muito bom aquele espaço, espero que mantenham. É uma maneira de juntar o campo e a cidade”. Em sua barraquinha, cujo o mar é o protagonista, Rosa é naufragada diante das referências ao oceano que ela trás. As garrafas, telas e cangas à venda são estampadas por fotografias e reproduções de praias feitas por ela mesma.


(Imagens: Guilherme dos Santos)

Quando está de volta ao seu caminho marítimo, indo pro local onde mergulha, Rosa não leva sacola para recolher o lixo que encontra na areia da praia, afinal não é necessário. Se há uma certeza que ela tem, é que encontrará várias dessa “espécime” trazidas pela maré. Em cerca de 700 passos, ela diz que já é possível encher um saco. Durante essas suas trajetórias, Rosa já encontrou outras figuras que também se dedicam a limpar a praia. Se surpreendeu quando se deparou com crianças fazendo a mesma ação que ela: “Fiquei muito feliz”. Além delas, o fotógrafo Xirumba, eternizado na música de seu amigo Alceu Valença, “Leque Moleque”, também esbarrou no caminho da mulher.


Não há motivos para não acreditar que Rosa realmente veio de outro mundo, onde a poluição e o embate com a natureza era algo distópico demais para ser real. Progressivamente, a mulher foi transferida para uma realidade em que histórias de sereias e vampiros brasileiros é tão mais possível que a existências de botos, golfinhos e baleias. Entretanto, enquanto aguarda os velhos sinais da chegada desses animais que sentia quando era criança, Rosa prova que, seja em qual for o mundo, sempre é possível sonhar. Uma de suas esperanças, segundo ela, é que não haja mais pessoas catando lixo para comer, como já encontrou em seu caminho. Também espera que no futuro não haja mais toda essa sujeira na água. “Assim eu poderia ir à praia catar conchinhas do mar”.

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