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Foto do escritorGuilherme dos Santos

Comida é vida, não morte

Diante de uma economia agro(tóxica) efetivada há mais de 50 anos, a alimentação orgânica está presente em solo pernambucano.


Foto: Guilherme dos Santos

Comida, um negócio


Foi em meados dos anos 1870 que ele foi inventado, e na Segunda Guerra Mundial quando foi mais desenvolvido. Alguns deles foram usados até como arma química, e, durante esse período, não se podia imaginar que algum dia estariam tão estreitamente ligados à alimentação, afinal comida é sinônimo de vida, não de morte. O veneno, que alguns chamam eufemicamente de defensor agrícola, herbicida ou fitossanitário, tem um nome muito mais conhecido, e que evoca seu real sentido: o agrotóxico.


O impulso maior da difusão desses químicos aconteceu na Revolução Verde, período pós Segunda Guerra Mundial no qual técnicas agrícolas foram aprimoradas, o que proporcionaria uma maior produção de alimentos. Surgia também, desse modo, a promessa de combate à fome.


Aqui no Brasil, nos anos 1970, enquanto o país vivia no cenário da ditadura, a revolução chegou, assim como em muitos outros países em que a agricultura era a principal base econômica. Foram fortes as pressões sofridas para a utilização do químico. Na hora de conseguir financiamento bancário para comprar as suas sementes, agricultores eram agraciados somente caso comprassem o veneno junto. Em artigo publicado pela revista “História, Ciência, Saúde, Marquinhos” (HCSM), os doutorandos em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz, Leonardo de Bem Lignani e Júlia Lima Gorges Brandão, citam que nesse período cerca de 85% da compra de agrotóxico haviam sido feito a partir do financiamento de crédito rural.


Hoje, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o Brasil é um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo. Ironicamente, os dados da fome contradiz a justificativa da utilização do químico. De acordo com relatório publicado em julho de 2023 pela FAO, houve uma piora nos indicadores de fome no país, que mostraram que 70,3 milhões de pessoas estavam em estado de insegurança alimentar moderada, que é quando possuem dificuldade para se alimentar. O levantamento também apontou que 21,1 milhões de  pessoas estavam com insegurança alimentar grave, caracterizado pelo estado de fome.


Para Brisa Belo, 35, empresária, chef do restaurante Frutteto e técnica em agroecologia, não há como não associar o grande consumo de agrotóxicos com as ondas de problemas de saúde. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 20 mil mortes são registradas por ano por conta do consumo do químico. “Nos últimos 50 anos, a alimentação evoluiu de uma forma totalmente inadequada para os seres humanos”, conta a chef, que relaciona a causa de doenças como diabetes, obesidade e hipertensão arterial à comida, a única coisa em comum entre todas as pessoas. Brisa também cita a grande ingestão de ultraprocessados por parte da população. “Por que a gente tem produtos cheios de aditivos feitos para durar dois anos na prateleira? Não estamos em guerra. Esse é um processo que começou na segunda guerra mundial e continuou porque era lucrativo.”


Instalado em uma casa dos anos 1940, com pintura rosa marcante e plantas decorando a fachada, o restaurante de Brisa fica localizado no bairro das Graças, em Recife, e, como ela diz, "sempre teve foco na sustentabilidade". Ele segue a filosofia plant-based, em que a base principal são alimentos com o mínimo de processos possíveis.


Brisa é uma entre tantas outras pessoas que vão de encontro com o sistema alimentar artificial imposto tão naturalmente. Para ela, o desafio do país, na verdade, não é conseguir produzir alimentos suficientes ou não. Há outras adversidades para se resolver. “O Brasil não tem um problema de produção agrícola. A produção é suficiente para alimentar dois Brasis. O Brasil tem um problema de distribuição de renda, de conscientização, de políticas, e de consciência individual.”


A reforma


Abraçada pelo som do cantor e compositor Talis Ribeiro, que interpreta músicas populares brasileiras, como “Ovelha Negra”, de Rita Lee, e “Maluco Beleza”, de Raul Seixas, a Feira da Reforma Agrária acontece todo sábado em Recife, no bairro de Santo Antônio, há três meses. Ela é organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), movimento de ativismo social e político que desde 1984 atua para busca de direito à terra e contra a economia alimentar imposta há tantos anos. Na feira, é possível encontrar agricultores vindos de assentamentos de todas as localidades de Pernambuco, como Limoeiro, Caruaru, Água Preta e Ibimirim.

Barracas da feira da reforma agrária que acontece todo sábado no bairro Santo Antônio, em Recife
Feira da Reforma Agrária. Foto: Guilherme dos Santos/ Coletivo Caburé

Rose Freitas, 57, é uma das assentadas e faz parte da direção estadual MST. Em sua barraca, ela vende diversos produtos, como banana, limão, pimenta, velas aromáticas e chás. Quando vai à feira, a cada 15 dias, recebe clientes de várias localidades. Várzea, Boa Viagem, Casa Amarela. E além das atividades na produção, Rose ainda é formada em saúde coletiva pela Fiocruz e envolvida com o setor de saúde do movimento.


Graduada em Relações Públicas, Rose trabalhou na área apenas durante um estágio em uma indústria de telefonia. Logo ela percebeu que não se via trabalhando com roupas formais e salto alto. Decidiu então alugar e depois comprar um bar na praia do Janga, na cidade de Paulista, em Pernambuco. “Fui fazer relações públicas na praia”, conta.


Rose se aproximou do MST em 1991, enquanto lutava contra a tentativa de demolição de bares na praia, por parte da prefeitura da cidade. “Começou a minha luta para padronizar os bares. Foi quando os conheci, e eles me apoiaram muito”. A partir desse momento, Rose já estava bastante envolvida com eles, mas só por volta dos anos 2000 que ela mergulhou na agricultura e na produção de alimentos. Ela conta como transformou vários aspectos da sua vida. “Fui vendo outra vida”, diz, “o que vale a pena é mostrar para o governo fascista que estava aí que a agricultura familiar existe”.


Se você tem um pedaço de terra em casa, plante, porque você vai colher!

- Rose Freitas


O desenvolvedor de software, Jorge Luís, 44, vai à feira esporadicamente, e acredita que se existissem causas como essa do MST a mais tempo, seu avô, que morava em São Miguel dos Campos, em Alagoas, não teria saído de sua terra. A cerca de 324 km de distância de Recife, o homem, a esposa e os três filhos, um deles o pai de Jorge, se deslocaram a pé até a capital pernambucana em busca de uma oportunidade de emprego prometida. Ele teve que sair de sua casa, pois a terra arrendada em que morava foi vendida. Para o neto, Jorge, comprar em locais como a feira traz uma proximidade com o alimento e com o produtor. “De repente você pergunta quando foi plantado aquele inhame, e eles explicam tudo. Você sabe a procedência”, conta o desenvolvedor.

Jorge Luís, um homem negro vestindo uma camisa azul, na frente da barraca de Rose
Jorge Luís, frequentador da Feira da Reforma Agrária, em frente à barraca de Rose. Foto: Guilherme dos Santos/ Coletivo Caburé

Desafios e Conquistas


Desde que se entende por gente, como ele diz, Severino Lacerda, o Biu, vive no mundo da agricultura. Aos 43 anos, Biu tem sua própria horta desde que tinha cerca de 20. Começou a plantar com os métodos convencionais, e utilizava veneno como controle de suas plantações. No entanto, há 15 anos, transformou sua forma de produzir alimentos quando recebeu a proposta para plantar orgânico do SERTA (Serviço de Tecnologia Alternativa), uma organização que forma pessoas para a produção e desenvolvimento sustentável.  Para isso, Biu teve que estudar agroecologia, uma ciência que resgata princípios tradicionais e sustentáveis da agricultura, que  retoma concepções anteriores à revolução verde. Desde então, ele trocou o herbicida titanium pela mamona, o “Mata mato” por misturas de plantas, e entendeu que a terra precisa sim de adubo, mas o natural. “No orgânico a gente pega o defensivo da natureza. A pimenta, o ninho, a urtiga. Se você usar esses três ingredientes, as pragas não aguentam não.”


Depois que fez essas mudanças, toda dinâmica do seu trabalho mudou. Antes, seus principais clientes eram atravessadores, que são pessoas que compram para revender em outros locais, como na Ceasa. “Lá eles vendiam por 10, 12, 13 reais, mas só nos pagavam 5”, relata o agricultor . No orgânico, por produzir menos, Biu não precisa mais dos atravessadores, ele mesmo vende. A produção, que antes chegava aos 10 mil alfaces por semana, hoje é 600. “Mesmo assim compensa, porque eu mesmo planto, e eu mesmo vendo, e as terras não ficam tão cansadas”, explica o agricultor, “tem uma hora que a terra faz: basta! não aguento mais”.


Hoje Biu planta 32 variedades de alimentos. Couve, rúcula, cenoura, rabanete e alface são algumas das opções entre tantas outras presentes no cardápio de sua horta. O agricultor passou a entender que nem sempre vai colher todas, e que isso não é um problema. “Eu estava com uma vagem, parecia algodão, cheia de flores. Quando foi a noite bateu uma chuva grossa. Quando amanheceu, estava só o pé”, conta rindo ao se lembrar, revelando que um de seus sonhos é comprar uma estufa para proteger as plantações. Em sua busca para realizar a sua meta, Biu diz que a estufa ficaria em torno de 22 mil reais. No entanto, para conseguir esse crédito nos bancos, ele encontra muita burocracia. “Acontece que você, agricultor do nordeste, não tem possibilidade de tirar um grande crédito. Têm dono do agro no sul que tira 1 milhão de reais. Aqui no nordeste, para conseguirmos, temos que levar até a certidão de óbito”, ironiza.


Apesar das adversidades, Biu conta que já conquistou muito com a agricultura. “Foi tanta coisa, principalmente respeito”, diz. Ele fala orgulhoso de seu carro, o qual pode levar as suas mercadorias até onde ele vende. A construção do poço para armazenar água em sua casa é outro detalhe que Biu nunca deixa escapar. Foi a materialização da mudança de vida do homem que quando criança carregava água em um burro para abastecer a casa da sua família, e a confirmação da promessa que fez a mãe ainda menino: “Eu vou trabalhar bem muito. Quando eu tiver dinheiro eu vou cavar um poço”. O choro e a festa foram grandes diante da alegria que alcançou pelo seu trabalho como agricultor familiar, e o poço de Biu, há 15 anos, anda cheio.

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