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“Eu trabalho Clandestino”

  • Foto do escritor: Letícia Barbosa
    Letícia Barbosa
  • 19 de nov. de 2023
  • 9 min de leitura

Atualizado: 1 de mai. de 2024

A ausência de lucro direto advindo do trabalho doméstico contribui para desvalorização da atividade


Quase sem direitos, diaristas são prejudicadas pela desvalorização do trabalho doméstico, tendência de flexibilização trabalhista e herança escravagista


Foto da Carteira de Trabalho e Previdência Social (Imagem da internet)


O trabalho doméstico não é produtivo porque não tem fins lucrativos, assim explica Sabrina Barbosa, advogada trabalhista, a definição da atividade empregatícia realizada no âmbito do lar. De acordo com ela, não há como encaixar a categoria como produtora de recursos para a sociedade, pois é a pessoa que trabalha fora que gera renda e que, assim, paga os serviços da babá, da empregada doméstica e da diarista, por exemplo.


Sem esses profissionais, entretanto, a pessoa que exerce a atividade reconhecida como produtiva teria que abdicar de suas funções para exercer o trabalho doméstico não remunerado em tempo integral.


Dessa forma, será que o trabalho doméstico é apenas reprodutivo? O que seria das atividades econômicas ditas produtivas sem que os profissionais, em sua maioria mulheres, não ficassem responsáveis pelas funções de limpeza, cozinha e cuidados?


Lenira Carvalho
Lenira Carvalho (Imagens da internet)

Lenira Carvalho (1932-2021), que inspira todos os intertítulos desta reportagem, fundou o Sindicato das trabalhadoras Domésticas de Pernambuco. Para ela, a doméstica vive a luta de classes, assim como qualquer outra categoria de trabalhadores, mas sua atividade está “escondida” e não é “vista”, problema que se estende a outra categoria vizinha: as diaristas. Essas que exercem as mesmas funções das celetistas, mas com deveres, assim como direitos, diferentes.


A flexibilização do trabalho das domésticas se insere dentro do contexto mais amplo do Neoliberalismo e ocorre também em outras categorias. Entretanto, a peculiaridade deste grupo tem raízes mais profundas associadas à questão de gênero e raça que interferem na classificação da função como improdutiva. Isto é possível perceber no percurso lento dos avanços das leis trabalhistas para categorias que envolvem o labuta nas chamadas “casas de família”. 


Dizem que a doméstica não produz


O Instituto Brasileiro de Economia da Fundação  Getúlio Vargas contabilizou que a remuneração das  tarefas em casa e do cuidado seria equivalente à  produção do estado do Rio de Janeiro, o segundo  mais rico do País, o que significa que o trabalho 

doméstico produz em torno de 13% do Produto  Interno Bruto brasileiro.

"Quando eu cozinho para esses caras que estão lá discutindo, para esses médicos, para esses engenheiros, para tudo, eu estou dando um contribuição"

Ainda segundo o estudo, são as mulheres as responsáveis por 65% do trabalho doméstico no Brasil. Além disso, as trabalhadoras domésticas, aquelas que exercem essa função de forma remunerada, têm o menor rendimento na economia.


Lenira Carvalho já refletia sobre isso em vida. “Quando eu cozinho para esses caras que estão lá discutindo, para esses médicos, para esses engenheiros, para tudo, eu estou dando uma contribuição”.


No campo do Direito, a advogada Sabrina entende a essencialidade da atividade e enfatiza a desigualdade do acesso a direitos para a categoria. Ela exemplifica com o seguro desemprego, o qual as trabalhadoras só têm direito a três meses, enquanto trabalhadores de outros setores podem receber o benefício por até seis meses.


Só a gente que vive é que sabe


“Trabalhei com carteira assinada como costureira na fábrica da Torre, na fábrica da Hering. [Trabalhei] como cozinheira em um restaurante self service. Hoje vivo de congelamento, [eu] trabalho clandestino”. É assim que Abigail Lima, 55 anos, define sua trajetória laboral.


Mulher negra, residente no bairro de Nova Descoberta, na  Zona Norte do Recife, Abigail integra o Fórum de Mulheres de  Pernambuco, na Rede de Mulheres Negras e no Grupo Mulher  Maravilha. A luta feminista e antirracista são pautas  fundamentais nas suas vivências. Ela conta que se envolveu  com política desde 2007 e, desde então, tem sido um dos  principais motivos que movem sua vida. “A prática do  feminismo que eu vivo é puxado. O que eu gosto de fazer é  estar no feminismo. Eu me sinto muito bem com as pessoas com as quais eu participo das coisas”, ela afirma.


Porém, quando o assunto são os direitos para a categoria de diaristas, sua opinião é diferente. “Hoje não acompanho direitos trabalhistas, pois sei que não tenho [direitos] e não tenho interesse”, explica.


Para ela, há vantagens em atuar nesse formato de trabalho, pela flexibilidade de fazer seus horários, por acreditar que consegue um retorno financeiro maior e por não passar por determinadas situações de exploração. Abigail argumenta que conhece histórias de empregadas domésticas altamente desvalorizadas.


A diarista exemplifica a situação de uma colega: “ela [a patroa] disse ‘o copo que eu tomar água você lave que eu tô pagando. Eu não lavo para não quebrar minha unha e estou lhe pagando’. Ela [ a colega] me disse que quando chega na segunda-feira até a última xícara do armário está usada, tem panela até no chão, não tem lugar nem para botar o pé de louça suja.” Por fim, desabafa: “eu fico besta com pessoas que têm coragem de humilhar a empregada doméstica.”


De forma semelhante, Alexandra Correia, também diarista, acredita que a ocupação permite mais tempo com seus familiares. Ela, que exerce ainda as funções de técnica de enfermagem e cuidadora de idosos, conta que tem amigas que terminaram seu relacionamento por conta do trabalho, o que, para ela, é um problema.


Aos 48 anos de idade, a experiência trabalhista de Alexandra seguiu os passos da mãe, que também se dedicava ao trabalho doméstico, mas como empregada. “Minha mãe sempre foi doméstica. Ela era do interior e a vida era muito dura. Ela sempre passou para a gente que o pai dela forçava ela trabalhar na roça, plantando macaxeira, milho, essas coisas. Eram três homens e cinco mulheres. O trabalho era muito pesado, uma das irmãs dela veio para Recife morar com uma prima e trabalhar como doméstica. Arrumou emprego para ela também. Fugiram da roça e não voltaram mais. Ela era bem jovem quando saiu de lá, de São Benedito do Sul. Ela recebia, morava na casa da prima e ia trabalhar”.


A trajetória trabalhista de Alexandra também envolveu atividades celetistas: “entrei primeiro para trabalhar em uma geriatria [em um hospital] perto de onde é a escola Dom Bosco. Trabalhei com limpeza e cozinha. Daí tive uma filha, Débora. Não arrumei mais emprego porque tinha que cuidar dela. Então, montei meu comércio. Fiquei com muito estresse e correria de levar a menina para escola e ainda estudar. E aí comecei como diarista.”, descreve ela. 


Abigail e Alexandra concordam que o ponto positivo  de seu trabalho é a independência quanto a horários  e indicam que se sentem donas do próprio serviço. 

Entretanto, quando indagadas acerca da  possibilidade de se acidentarem e ficarem sem sua  principal ferramenta, o próprio corpo, percebem a  fragilidade de sua condição.


As diaristas têm sua contribuição à previdência social paga por uma das famílias para qual cada uma trabalha. Neste caso, estão, em alguma medida, protegidas para situações em que precisem se ausentar por invalidez ou doença.


Com uma trajetória semelhante, mas em um contexto diferente, está Ana Paula dos Santos, 51 anos, também diarista. Ela conta que passou por um período com carteira assinada, até chegar, atualmente, ao regime de trabalho sem direitos. “Desde os 15 anos eu trabalho em casa de família. Hoje me encontro com 51 e continuo trabalhando em casa de família. É assim mesmo, é o meio que a gente tem de se viver”, desabafa Ana.


Depois de 25 anos de contribuição, Ana Paula está há cinco sem fazer o pagamento ao Instituto Nacional de Segurança Social (INSS). Segundo ela, o que recebe é muito pouco e não resta para esse fim.

"A vida como diarista não é nada boa. Quem pensar que a gente é feliz como diarista, não é. Porque a gente sofre, a gente rala tanto pra ganhar 150, 180 em uma diária"

Ana Paula prefere ter direitos do que a flexibilidade trabalhista apontada pelas colegas como benefício. Afinal, ela não tem o auxílio de nenhuma das famílias para quem trabalha para pagar sua contribuição mensal à previdência social.


A doméstica vive a luta de classes


Em abril de 1973, há 50 anos atrás, entrava em vigor o primeiro conjunto direito das trabalhadoras e trabalhadores domésticos. A Lei 5.879/72 garantiu à categoria férias anuais, com adicional de um terço do salário, carteira de trabalho e serviços da previdência social. Quinze anos depois, a Constituição Federal de 1988, adiciona direitos como salário mínimo, 13º salário, repouso semanal remunerado, licença maternidade e direito ao aviso prévio.


Com mais 25 anos de luta, a chamada PEC das domésticas adicionou o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), a delimitação da jornada de trabalho, pagamento de horas extras, seguro-desemprego, adicional noturno e abono família. A proposta de emenda constitucional entrou em vigor em outubro de 2015, pela Lei Complementar 150.


A iniciativa veio adequar o país ao que já vinha sendo discutido internacionalmente em relação ao trabalho doméstico. A Convenção 189, da Organização Internacional do Trabalho, já definia em 2011 o que seriam condições dignas para esse tipo de ocupação.


O tema tem ainda como fatores a questão do gênero e da raça. A socióloga especialista em gênero, racismo, identidade e autoritarismo, Liana Lewis, explica que a desvalorização do trabalho doméstico remonta aos tempos escravagistas. “Temos a cultura muito influenciada pela escravidão, passamos por uma revolução burguesa na América Latina, mas não transformamos trabalhadores em cidadãos, que continuam sendo essa massa explorada”, ela explica.


De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 97% dessa atividade é desempenhada por mulheres e, entre elas, 64% são negras.


Liana acrescenta, apontando como essa herança perdura na associação do trabalho físico e braçal às pessoas negras e quanto às mulheres o problema é ainda maior. “Vamos ter uma grande cisão do espaço público, determinada vigilância, o que está acontecendo dentro das portas fechadas da residência. Violências e estigmatização contra essas mulheres, na maior parte das vezes negras”, explica ela.


O contexto capitalista e neoliberal que se impõe também tem sua parcela de responsabilidade no problema. “O trabalho que é extremamente árduo, que é exaustivo, que você vai desempenhar múltiplas tarefas, que vai assegurar o conforto e tranquilidade para várias famílias, vai ser um trabalho extremamente desqualificado, porque isso é típico do capitalismo. Isso é típico da violência capitalista”, analisa Liana.


Para a socióloga, pode-se comparar a interação trabalhista dentro do lar ao que vem sendo chamado de relação abusiva. Isso porque envolve algum grau de intimidade e a ideia do “como se fosse da família”. Ela define como “surreal” a circunstância da pessoa que convive diariamente com a família e, por vezes, compartilha o lar, não comer à mesa de jantar ou até mesmo a comida.


Neste cenário, a prática de tratar dignamente a pessoa que se ocupa das atividades domésticas acaba sendo individualizada como gesto de gentileza. “Quando a gente fala das escolhas individuais, com a nossa trajetória profundamente escravocrata, a gente sabe que vai ser a minoria da minoria que vai tratar com dignidade e com respeito o que essa população merece. E aí esse discurso é como se fosse da família, é justamente para minorar esse processo de violência. Na verdade, não é para minorar, faz parte do processo da violência, porque faz com que a trabalhadora acabe internalizando esse sentido devedor, de ‘mas ela me trata tão bem’ “, Liana pontua.


Mas os problemas de todas as domésticas são os mesmos 


Ainda de acordo com a socióloga,Liana Lewis, não há grande diferença entre as atividades realizadas pelas empregadas domésticas e pelas diaristas. O que na prática as distanciam é o grau de convívio com as famílias para as quais trabalham. 


Em termos legislativos, essa distinção se dá a princípio pela quantidade de dias de prestação do serviço. É a partir de três dias de trabalho semanais que a condição de diarista passa para a de empregado ou empregada doméstica. 


Sabrina Barbosa, advogada trabalhista, explica que o vínculo de trabalho se dá a partir da pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação. Isso significa que para ser empregado - em qualquer categoria profissional - o trabalho precisa ser executado exclusivamente pela pessoa contratada de maneira contínua, estando a pessoa sujeita a ordens do(a) contratante em troca de um salário.


Diaristas não têm salário e sim remuneração por serviços prestados. Além disso, o usufruto de seu trabalho não exige o pagamento de encargos, como o FGTS e Contribuição para o INSS. Dessa forma, a opção por esse tipo de relação laboral é, por vezes, uma forma de economizar por parte das famílias às custas do sucateamento da atividade doméstica.


O IBGE constata que, em dez anos após a PEC das Domésticas, o número de empregadas diminuiu. Neste período, houve crescimento da atuação de diaristas. Atualmente, a cada quatro trabalhadoras domésticas no Brasil, três trabalham sem carteira assinada. 


Luiza Batista, presidente do Sindicato das Domésticas de Pernambuco (Sindoméstica) e da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), afirma que há casos em que o suspendem a contratação da trabalhadora que exercia a função durante a semana e substitui por duas ou mais que prestem serviços por dois dias. “Não é uma questão de não precisar do serviço, mas de não pagar os direitos”, conclui Luiza. 


Para Luiza, a discriminação da categoria se dá também no âmbito do Direito. Ela faz a comparação com outros setores, como os de saúde, no qual a prestação de serviço configura-se apenas em caso de um dia de trabalho.

"Por que para o serviço doméstico não é assim?"

Para a diarista, Abigail, um plano de saúde é o que faz falta para sua função. “Eu passei dois anos sem ir a uma ginecologista porque não consegui marcar consulta. Principalmente, para pessoas de idade, que tem diaristas que são mais velhas que eu”, ela reflete.


Já Alexandra não pensa muito sobre a possibilidade de direitos para sua categoria. Em sua fala gosta de colocar ênfase na formação em técnica de enfermagem, negando, em alguma medida, sua principal fonte de renda, o trabalho doméstico.


Ana Paula segue desejando o dia em que terá condições melhores de vida e de trabalho. “Mas eu creio no Senhor que um dia eu vou me libertar, um dia eu vou ganhar minha carta de alforria e vou sair das casas dos outros. Porque não é nada fácil a gente trabalhar como empregada doméstica. Não é nada fácil ser diarista, não é nada fácil cuidar de idoso. A gente só faz porque a gente precisa. Porque a gente tem que trabalhar para botar o pão para dentro de casa”, desabafa.

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