Vi o peso do mundo nas costas de uma mulher
A vida de mães que precisam mudar suas rotinas para poderem acompanhar o tratamento contra o câncer de seus filhos
São 6 horas da manhã de uma segunda-feira, 10 de março, em Recife, e o calor rotineiro da cidade como sempre está presente. Enquanto isso, algumas pessoas estão esperando o dia amanhecer totalmente para iniciar a banalidade preguiçosa de uma semana pós domingo de Páscoa. Porém, esse não é o caso das mulheres que aguardam as horas passarem para que, finalmente, seus filhos sejam atendidos na pediatria do Hospital do Câncer de Pernambuco (HCP). Algumas delas chegaram até antes disso, e mais outras estão para chegar. Elas vêm de diversos lugares: Carpina, Escada, Jaboatão, Poção, Frei Miguelinho e até mesmo Maceió. No entanto, há algo singular, algo que diz que mesmo com essas diferenças de localidade, elas lutam pelo mesmo propósito: a vida dos filhos.
Segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA), no Brasil, assim como em países desenvolvidos, o câncer já representa a primeira causa de morte por doenças em crianças e adolescentes. Diante de um diagnóstico de câncer infantojuvenil, as mães precisam se adaptar a um novo estilo de vida e a uma nova realidade para poderem acompanhar o tratamento de seus filhos. Entretanto, elas devem aceitar que o mundo não se adapta junto com elas. Suas vidas, cercadas de dificuldades e angústias, fazem parte de um universo particular, como uma placenta invisível que só quem está dentro pode compreender.
Tatiane Ferreira, 36, já esteve muitas vezes no lugar dessas mães. A diarista, que sempre trabalhou para sustentar os três filhos, teve sua rotina completamente mudada quando, em 2017, seu filho mais velho, que tinha 16 anos na época, foi diagnosticado com Sarcoma de Ewing, um tipo de câncer que atinge os ossos e tecidos moles, como músculos e cartilagem.
Receber a notícia é o primeiro choque. “Quando o médico disse o resultado, eu procurei um buraquinho para me “ensocar”, mas não encontrei”, conta Luciana dos Santos, 47, mãe de Christopher, 23. Com seu jeito ativo, a moradora de Vitória de Santo Antão, Pernambuco, não esconde sua fé. “É muito difícil, mas Jesus é grande, Jesus está conosco”, anuncia.
Vinda de Frei Miguelinho, cidade pernambucana que fica a 145 km de Recife, Márcia, de 37 anos, acompanha seu filho João Victor, de 18 anos. Ela diz como foi impactante saber do diagnóstico. “Foi um tiro na titela, vim “prestar” depois de um mês”. Sua voz rouca, segundo ela, é consequência das emoções que passou.
Para Tatiane não foi diferente. “Foi como se o chão tivesse aberto, e tudo estivesse desabando", conta. Descobriu após uma ressonância, depois de muitas idas e vindas na UPA da sua cidade, Surubim, onde só aplicavam injeções e receitavam remédios que não resolviam as dores na lombar que seu filho, Anderson, sentia. Ao ver o nome no papel que continha o resultado, ela já desconfiou qual era a doença. Para sua tristeza, era a mesma que levou o pai de seus três filhos anos antes. Tatiane não quis falar para Anderson, que só soube o que estava acontecendo quando eles foram para o HCP fazer a biópsia. “Por ter perdido o pai deles, eu não sabia o que dizer”. Depois do resultado da biópsia, que dizia que de fato era um tumor maligno, mãe e filho começaram a sua jornada.
O tratamento e tudo o que ele traz consigo é o segundo choque. As viagens para quem vive longe, as horas esperando o atendimento e as furadas nas veias diárias fazem parte dessa nova vida. Sair de Surubim, cidade do interior de Pernambuco que fica cerca de 123 km de distância da capital pernambucana, virou algo rotineiro para Tatiane e Anderson. Toda semana mãe e filho estavam juntos dentro do veículo disponibilizado pela prefeitura da sua cidade a caminho do HCP.
Com uma rotina tão singular, fica difícil manter um trabalho, e muitas mães abandonam seus empregos para se dedicarem ao tratamento dos filhos. Segundo Tatiane, a maior dificuldade era justamente o custo de vida, afinal como ela poderia trabalhar ao mesmo tempo que cuida do filho? A vida tornou-se mais valiosa e mais cara, enquanto o tempo, mais escasso.
Luciana, que não vai poder fazer seu serviço de diarista esta semana, diz que o dinheiro que vai conseguir vai vim de uma galinha que ela vai matar no sábado. Além disso, conseguir algum tipo de benefício que possa ajudar nas despesas do dia a dia é muito difícil e burocrático. Tatiane, que não poderia mais trabalhar em dia de semana, fazia isso em muitos domingos em que deveria descansar para estar bem para mais uma semana de tratamento. Para Madalena, de 54 anos, que acompanha o filho Lucas, de 18 anos, a solução foi vender doces e salgados, já que abandonou o cargo de professora. Ela, que sempre vem acordada no caminho de Carpina até o HCP, diz que dormiu dessa vez, por estar cansada pelas encomendas de ovos para a páscoa. “A gente tem que se virar, não é?”.
A diretora da ONG Por Amor de Muitos, Luceni Monteiro, que atua há quatro anos, tenta de alguma maneira melhorar a situação dessas famílias, através de ações, como arrecadação de alimentos e demais necessidades dos pacientes. Segundo tia Lu, como é conhecida, nenhuma das famílias está ilesa do sofrimento. Apesar da maior parte dos pacientes virem de longe, do interior de Pernambuco e até de outros estados, como Bahia e Paraíba, as famílias que moram em Recife também sofrem com o deslocamento, visto que devem arcar com o transporte. “A mãe desempregada não tem como comprar comida nem remédio, imagina pagar uber”, diz tia Lu. “Temos até um grupo no WhatsApp de voluntários do uber para ajudar essas famílias, mas nem sempre é o suficiente”. A maior dificuldade da causa é a falta de pessoas. Em geral, muitos se aproximam do projeto, mas quando os pacientes vão embora, as pessoas vão junto.
A terceira dor é pelos filhos. Dessa vez por outros: Aqueles que estão em casa, muitas vezes sendo cuidados por outras pessoas. O pensamento dessas mães viaja todos os quilômetros percorridos de volta sem congestionamento. “Deixar os pequenos em casa dói muito”, conta Márcia, ao lembrar dos outros dois filhos, Joana, de dez anos, e Pedro, de sete. “Eles ficam com o pai e com as tias, mas nada é como a mãe”. Quitéria, 37, que se distrai costurando enquanto aguarda o atendimento, deixa outros cinco filhos a 240 km de distância, enquanto acompanha Alex, 17, no tratamento. Para vir de Poção, Pernambuco, ela e seu filho acordam 1h 40 min, e passam cerca de 4 horas até Recife. Quitéria lembra quando o carro quebrou no meio do caminho de volta ao interior de Pernambuco. Cansaço e chuva marcaram esse dia. "Cheio de buraco no caminho, o carro quebra rápido”, justifica Quitéria, ainda com a linha na mão, como se pudesse remendar o mundo.
Essa vida chega trazendo muitas partidas. Testemunhar aqueles que falecem é comum, mas ainda assim muito difícil para essas famílias. Anderson se foi em agosto de 2021, poucos dias depois de completar 20 anos, após vencer o câncer duas vezes e passar por uma amputação. Partiu deixando uma mensagem: o câncer nunca o venceu. Se foi em decorrência de uma imunidade baixa repentina, ou infecção, como diz o laudo médico. Ou até mesmo, como muitos dizem, por ter cumprido sua missão. Os olhos de Tatiane brilham ao falar dele, e o sorriso ganha espaço, denunciando seus sentimentos. “Anderson para mim é uma saudade que dói bastante. Tem horas que eu penso que ele está viajando, e está para chegar”, conta a mãe, que lembra como muitas vezes ele foi suporte para ela. “Era um menino de muita fé. Até quando eu fraquejava, ele dizia que por mais difícil que fosse, o amanhã seria melhor”.
Anderson também ajudou muito aqueles que estavam ao seu redor. “Tem pacientes que dizem que era Anderson quem dava força. Algumas pessoas até falam que eu não era mãe de um menino, era mãe de um anjo”, conta Tatiane.
Esse relacionamento entre as outras famílias é inevitável. Como filhos da mesma dor, essas pessoas entendem o que as outras passam e compartilham os momentos difíceis e os felizes. "O tratamento só não é tão difícil, pois temos os outros para conversar” diz Jaqueline, mãe de Ihan. Para Tatiane é indiscutível. “A gente vira família”.
E não há alegria maior do que a vitória contra a doença. Quando alguém está curado totalmente do câncer, o ritual é simbólico: tocar o sino. Um som que anuncia uma vida nova. Uma melodia cobiçada e aguardada. Entretanto, essas badaladas não acaba o vínculo que o paciente tem com o hospital e com todos os outros que fizeram parte da sua rotina. Periodicamente ele ainda deve ir à unidade fazer revisão para certificar que está tudo certo, e que o câncer não voltará. Esse é o caso da pequena Melissa, que, como ela diz apontando seus quatro dedos para o alto, tem quatro anos. Vinda de Exu, 617 km de Recife, a pequena fez tratamento em 2021 e fez sua última sessão de quimioterapia em novembro.
A simpatia de Melissa é cativante, e é quase impossível acreditar que um corpo tão pequeno já passou por tanta coisa. Quando digo meu nome para ela, “Guilherme”, ela logo anuncia que é familiar. “É o nome do meu irmão, que foi morar no céu”.
Para a auxiliar administrativa, Érica Roberta, 41, que trabalha há nove anos no HCP, o que mais impacta ela é quando uma mãe descobre o câncer no segundo filho, como foi com Rosa, 41, mãe de Melissa. Seu filho mais velho, José Guilherme, foi diagnosticado em 2014, aos 13 anos, e veio a óbito em 2017, sem conhecer a irmã mais nova. “Eu acho que essa sensação é a mesma que o mundo cair. Você se faz muitas perguntas e se questiona o dia inteiro ao ver esse sofrimento”, conta Erica. Esse também foi o caso de Madalena, que recebeu o diagnóstico do seu filho Lucas em 2022, depois de ter enfrentado a doença com sua filha, Vitória, 22, que passou pelo tratamento entre 2016 e 2017. Também foi o que aconteceu com Tatiane. Felipe, irmão de Anderson, descobriu o tumor maligno 7 dias após o falecimento do seu irmão. De repente a mãe estava novamente no mesmo local que tratou o filho mais velho, ainda passando pelo luto.
Para sua surpresa, na primeira vez que chegaram ao HCP para fazer o tratamento de Felipe, foi separado para ele o mesmo quarto e a mesma cama que Anderson ficou pela última vez. Médicos e outras mães que a reconheciam como “mãe de Anderson”, faziam com que a dor queimasse ainda mais em seu peito. “Até hoje, tem hora que eu não entendo, mas eu peço a Deus para ele me confortar e eu compreender. Eu tento levar a minha vida hoje em dia, mas por mais que tente eu não sou mais aquela pessoa de antes. É muito difícil” conta Tatiane.
Felipe tocou o sino em Agosto de 2022. Após a amputação da perna, ele, que sonhava em ser jogador de futebol ou ingressar no exército, não pensa muito no futuro. Junto com o membro, ele perdeu a perspectiva, mas sua mãe busca mostrar para ele que ainda há muito para sonhar. “Não é porque ele perdeu a perna, que ele perdeu a vida”, afirma.
Diante de todas as dificuldades, as mães, algumas vezes mais do que os próprios pacientes, fecundam esperanças para a vida deles. Muitas almejam o retorno da vida normal, como alguém esperando acordar de um sonho ruim. Esperam que seus filhos resgatem seus sonhos antigos, ou apenas, como diz Quitéria, “que fique bem”. Luciana pede licença, e clama um pedido. “A minha vida é corrida e minha luta é grande, mas eu peço a Jesus saúde para caminhar com meu filho”.
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Já são 18 horas da noite desta segunda-feira, e o abafado noturno está presente enquanto algumas pessoas estão finalizando suas atividades do dia. Entretanto, esse não é o caso de algumas mulheres que estão se preparando em casa para viajar para Recife lutar pela vida de seus filhos. Elas estão fazendo a mochila. Colocam nela roupas, mantimentos, e esperança. Elas vêm de diversos lugares, têm diferentes histórias, mas todas seguram a mão de seus filhos, enquanto carregam o peso do mundo nas costas, esperando ouvir um sino tocar.