O Memorial da Justiça e a preservação da memória coletiva
- Helô Vasconcelos
- 12 de mar.
- 5 min de leitura
O papel da manutenção da história

Histórias de roubos de dentaduras, cartas anônimas alertando colegas sobre traições, partituras musicais. Essas são algumas das coisas inusitadas que o Memorial da Justiça de Pernambuco já encontrou, por acaso, entre os processos que resgata.
A instituição existe há cerca de 25 anos. 1/8 da idade do próprio Tribunal de Justiça pernambucano, do qual faz parte. Funciona na antiga Estação Ferroviária do Brum, no Bairro do Recife. É um espaço que atua como centro de memória, preservando cerca de 200.000 processos de até 200 anos atrás, e garantindo seu acesso pleno ao público, corroborando ativamente com a difusão de informações e produção de conhecimento.
O processo de recolhimento de um material até que seja disponibilizado para a sociedade é longo, mas feito com zelo. Começa assim:
Seu “João das Quantas” resolveu que a sala do fundo dos fórum tal, que estava sendo utilizada como depósito há décadas, merecia uma reforminha, algumas prateleiras para dar um jeitinho nas papeladas, e um espacinho para o café. No meio desse processo, se deparou com caixas de arquivos com uma estética bem diferente da que está acostumado a ver. Espiou e lá estava: um processo do século XIX. Ele chamou “Zezinho”, que sempre gostou de se meter em uns papos históricos. O rapaz rapidamente reconheceu que aquilo era ouro, embora não tivesse muita ideia do que estava escrito porque ô caligrafia complexa de ser compreendida - os historiadores até cadeira precisam pagar para isso. Suspeito que seja a mesma que os farmacêuticos cursam a fim de ler letra de médico.
Então Zezinho lembra do Memorial e a sua comarca entra em contato com essa galera que gosta de pôr a mão na massa. Quando pensam que não, Ivan - servidor carismático, prestativo e que, sem dúvidas, nutre um carinho imenso pelo o que faz - já está lá, prontinho para confirmar que o achado é mesmo histórico e cumpre a temporalidade para que possa ser abertamente consultado.

A partir daí, os processos são higienizados, devidamente identificados, às vezes passam por pequenos reparos - tudo feito com a paciência de Jó. Papel antigo perde a elasticidade e basta um movimento ‘nervosinho” para que virem pó -, até, enfim, caírem nos colos dos pesquisadores.
Foi em um recolhimento assim, bem ao acaso, que encontraram um processo contra Lampião, que está disponível virtualmente no site do Memorial. Ele foi alvo de muitos estudos, até ganhando espaço em exposição sobre o cangaço. Um processo de uma personalidade tão curiosa e conhecida, que estava largado em meio a uma documentação enorme sem identificação.
O acervo do Memorial fica em deslizantes, cautelosamente organizados para facilitar sua busca. Nessa área, há desumidificadores que são de extrema importância já que umidade deteriora mais rápido esse tipo de material e o Memorial fica quase dentro da praia. A temperatura também precisa ser mantida estável, e tudo é armazenado em caixas específicas para documentação histórica, posicionadas estrategicamente. Para manusear, só com luvas e máscaras.
É assim que o Memorial garante que tenhamos acesso às histórias do tempo em que o meu “bisa” era um menino. O diferencial do que se faz por lá, é que tratam de preservar histórias de pessoas anônimas, cujos relatos só podem ser encontrados ali, e que muito têm a dizer sobre as coisas. Os processos passados são as únicas fontes narrativas de escravizados como Antônio, por exemplo. O protagonista de uma das várias histórias contadas em uma conversa que tivemos com Cristhiane Raposo, historiadora e gerente do Memorial.
“Nós temos conflitos de escravizados e brigas de botequim que falam um pouco sobre o Recife de antigamente. Não são grandes nomes da história, mas anônimos que aparecem trazendo o enredo de como era a cidade no período. Como o processo de um escravizado chamado Antônio, que tinha uma certa liberdade do seu senhor de frequentar algumas tabernas do Recife. Em uma dessas tabernas, houve uma confusão e ele foi preso. A prisão dele não foi notícia nos jornais, mas, analisando a trajetória de Antônio, dá para você estudar vários meandros da escravidão em Pernambuco naquele período do século XIX. Dá para entender que existiam escravos de ganho, escravos que circulavam pela cidade, frequentavam bares, festas, e que não se submetiam a certas autoridades policiais. Não são grandes nomes, mas grandes histórias”, explica Raposo.
E não para por aí. São relatos preciosos, de épocas e pessoas que jamais teriam aparecido em registros físicos se não fosse por esses processos. É graças a eles que agora conhecemos Francisco, um escravizado que conquistou respeito da sociedade ao lutar na Confederação do Equador, ascendeu socialmente e, tragicamente, voltou a ser escravizado.
Cristhiane conta melhor essa história: “Francisco foi alforriado pela sua senhora numa categoria chamada ‘sob condição’. Depois, ele participou da Confederação do Equador, e lutou no Batalhão dos Henriques, aqui no Forte do Brum. Não ganhamos a confederação, não ganhamos as batalhas, mas ele ganhou muito respeito na cidade por ter participado de um movimento tão importante. E aí a sua senhora, dentro dessas condições, revogou a alforria. E ela justifica ingratidão. Ela vai à justiça, ao tribunal, e pede para que ele seja re-escravizado”.
“Usamos muito esse processo em eventos e congressos para produzir conteúdo, porque a trajetória de Francisco é muito importante para você pensar quais espaços ele poderia ocupar. Mesmo que não tenha ganhado a alforria, ele deixou a sua marca na justiça, na história. E aí, algum historiador ‘escavucando’ encontrou o arquivo. O desfecho não é bom, mas eu o considero um herói por ir contra o sistema. Imagina: um africano liberto, circulando por Recife, lutando ao lado de pessoas brancas, livres. E grandes pessoas! Senhores de engenho, capitães, etc.”, narrou a historiadora.
Para além de “velharia” e textos difíceis de serem lidos, o Memorial salvaguarda o passado e, dessa forma, o futuro também. Preservar essa documentação histórica é permitir que a sociedade interaja com ela, é provocar reflexões, questionamentos e transformação. É permitir ao povo que conheça de onde veio, por onde passou, quem é e do que Pernambuco é feito.
“A finalidade do tribunal é a prestação jurisdicional à sociedade pernambucana. O diálogo ‘memória e justiça’, pode acontecer através da documentação, da pesquisa, do debruçar e do guardar também. Memória é uma seleção. Ninguém guarda ou lembra tudo. Nesse processo de priorizar o que queremos guardar, fazemos um grande esforço para que a sociedade tenha acesso à maior quantidade de informações possíveis sobre sua história e a justiça. Olhamos para o passado com os olhos do presente. O acontecido atravessou o tempo, mas a forma como nós, no presente, olhamos para o passado é o que muda”, comentou a historiadora.
Ao resgatar e preservar processos judiciais que datam de séculos atrás, o Memorial desempenha um papel inestimável na manutenção da história e no entendimento da sociedade ao longo do tempo. Cada processo encontrado e restaurado revela aspectos fascinantes da vida e das lutas de pessoas que, de outra forma, poderiam ter sido esquecidas; fortalecendo a identidade cultural, a consciência social e a memória coletiva.
