O futuro começa no Semiárido: falta verba, sobram elogios
Sistema agroagrofotovoltaico ajudou famílias de agricultores enquanto teve financiamento; hoje, dos 10 equipamentos instalados, apenas dois funcionam
Por Guilherme dos Santos, Laysa Vitória e Letícia Barbosa
Relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), publicado em julho de 2023, revelou que 70,3 milhões de pessoas viviam em situação de insegurança alimentar moderada, ou seja, com dificuldades de se alimentar, em 2022. O Brasil, que em 2014 chegou a sair do Mapa da Fome, voltou a figurar nele oito anos depois, durante a pandemia de covid-19. Foi com o intuito de compartilhar conhecimentos e distribuir tecnologias que podem aprimorar a vida no campo, inclusive reduzindo a insegurança alimentar, que o Projeto Semiárido Sustentável surgiu.
Executado entre janeiro de 2021 e dezembro de 2022, o projeto do Serta (Serviço de Tecnologia Alternativa), organização que, desde 1989, atuando na formação de pessoas e na promoção do desenvolvimento sustentável, teve a finalidade de distribuir dois tipos de sistemas projetados para atender necessidades humanas, causando o mínimo de impacto possível (ecotecnologias) para os municípios de Ibimirim e Manari, no sertão do Moxotó.
As duas cidades pernambucanas foram escolhidas pelo baixo Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) que apresentam. Quarenta famílias, 20 de cada município, foram beneficiadas pela ação do Serta. Os contemplados foram selecionados a partir da indicação de lideranças, como presidentes de associações comunitárias ou de sindicatos.
As famílias também precisavam atender alguns critérios, como explica Leandro Carvalho, coordenador do Projeto Semiárido Sustentável: “Fizemos um diagnóstico socioeconômico e avaliamos se essas famílias se enquadravam no perfil. Os agricultores deveriam ter a atividade comprovada no Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF) e morar na propriedade. Precisavam fazer parte de alguma associação ou sindicato, ter o Número de Identificação Socia (NlS) em dia e ser fazer parte do grupo de baixa renda”, acrescenta.
Achei muito interessante criar peixes no sertão. Eu me pergunto por que isso não entra de fato em Ibimirim e em outras regiões. É um negócio que você vai ter lucratividade em um pequeno espaço de produção e criação
-Denis Fernandes (engenheiro e agricultor)
A participação ativa das famílias em todos os processos do projeto também era uma condição. Elas precisavam estar presentes em formações sobre o funcionamento, a finalidade e a manutenção das tecnologias, bem como escolher o local de implantação na propriedade. Com isso, a proximidade criada era consequência: “A gente cria esse vínculo. Eles abrem a porta de casa pra gente, e mostramos nossa gratidão pela receptividade”, afirma Sebastião Alves, coordenador de Inovação e Pesquisa Tecnológica do Serta.
Um dos sistemas distribuídos pelo projeto foi o de reuso de água, para o reaproveitamento da água da pia, do chuveiro e da lavagem de roupas na irrigação de plantações. O outro foi o agrofotovoltaico, que integra a produção de peixes, galinhas e vegetais através da recirculação de água e nutrientes em um sistema fechado, movido à energia solar. Em cada município, cinco famílias foram contempladas com esse sistema de aproveitamento da energia solar, enquanto as outras 15 receberam o sistema de reuso da água
O projeto teve um custo total de R$ 350 mil, financiados pela Fundação Banco do Brasil, através do Projetos de Inclusão Socioprodutiva (PIS). Cada sistema agrofotovoltaico está avaliado em R$2.814, fora a placa solar, cujo preço é de R$3.900. Para o coordenador de Inovação e Pesquisa Tecnológica do Serta, projetos como o do sistema agrofotovoltaico podem resolver grandes problemas, ajudando, inclusive, a combater a fome na região. Sebastião crê que a produção coletiva em larga escala é possível com o equipamento.
Para Leandro Carvalho, o Projeto Semiárido Sustentável foi uma experiência profissional que o fez testemunhar realidades que antes eram distantes dele. “Aprendi muito com as famílias e com a região. Vimos muitas mudanças: a emancipação e empoderamento das mulheres, além de tiramos agricultores da depressão. Foi muito satisfatório”, conta.
Um sistema bem familiar
Com chapéu na cabeça e sorriso fácil no rosto, Geralda Nery Fernandes, 49 anos, recebeu a reportagem enquanto cuidava da plantação no terreno do filho. Residente do assentamento Mulungu, em Ibimirim, ela é natural de Buíque, município agrestino localizado no portal do sertão pernambucano.
A agricultora foi uma das pessoas contempladas com o sistema agrofotovoltaico. Com a família, Geralda vai à feira no centro da cidade todos os sábados – lá vende coentro, rúcula, espinafre, couve e salsa. Para a agricultora, o equipamento possibilitou o aumento de sua produção, já que algumas hortaliças, como hortelã, eram muito mais fáceis de se desenvolver no sistema do que no solo.
A vida em Ibimirim não era fácil para Geralda e sua família. “Aqui não tinha nem uma cerca. Faltou o que comer, e eu nunca tinha passado por isso”, recorda. As vacas não se acostumaram com o calor do sertão. O marido de Geralda as trocou por um carro, que foi trocado por uma moto, que virou um amontoado de tijolos perto do muro de casa.
A saída para se reerguer e superar os infortúnios foi o cultivo de alimentos. No início, Geralda apostou em coentro e feijão de corda, depois de alface. Sem conhecer ninguém, saía pela cidade para vendê-los e comprar o que faltava na residência.
Com a ajuda de uma feirante, que indicou clientes e cedeu um espaço da própria banca para Geralda, a situação melhorou. Para se deslocar até o centro, Geralda recebeu ajuda do primo, Denis, também agricultor. Hoje, está aliviada porque o filho tem um carro. “Era sofrido porque eu carregava as coisas na mão e não tinha mais 20 anos”, comenta.
O último golpe que Geralda sofreu foi quando o marido decidiu sair de casa. “Eu fiquei sem saber o que fazer” – diz. Um ano após a separação, o Projeto Semiárido Sustentável e o Serta se aproximaram dela e de outras famílias. “Eu estava limpando a horta e ele (Leandro Carvalho, coordenador da iniciativa) veio falar comigo. Contei a minha história e começamos tudo de novo”, relata a agricultora.
O sistema agrofotovoltaico foi implantado na casa da agricultora a partir desse contato. Cuidar da aquaponia, onde são cultivadas as hortaliças foi fácil. “Não tinha terra, eu achei bom”, pontua.
Os técnicos a ensinaram o manuseio e a cada quinze dias faziam a manutenção no equipamento. Na feira, Geralda passou a levar principalmente cebolinha e hortelã provenientes da ecotecnologia. De acordo com Geralda, havia produtos toda semana para comercializar.
Após um ano, todo cuidado com o sistema passou a ser responsabilidade das famílias. A partir daí, a pequena produtora percebeu as dificuldades. Hoje, o equipamento permanece em frente à casa dela, mas não está funcionando. Já não é possível ver sinal de peixes ou de galinhas, pois a placa de energia solar deixou de funcionar há um ano, impedindo o bombeamento de água necessário para a criação de animais e plantações. “Eu não sabia mexer nesse negócio da energia. Às vezes, eu chamava o Denis, mas depois ele foi embora”, lamenta.
As grandes usinas solares estão sendo implantadas à custa do desmatamento da Caatinga. Estão pegando nossos raios de sol e transformando em energia caríssima. E antigamente, nós, os pobres, que éramos donos do sol
-Sebastião Alves (Coordenador de Inovação e Pesquisa Tecnológica do Serta)
O engenheiro elétrico Denis Fernandes, 35, primo de Geralda, também foi uma das pessoas contempladas pelo Serta, além de ter atuado como estagiário no Projeto Semiárido Sustentável. Assim como a agricultora, ele se adaptou rapidamente e sem grandes dificuldades ao sistema. “Como a gente vinha de um trabalho na agricultura, não tivemos problema quando adotamos a aquaponia Só tivemos que agregar outros conhecimentos, como o cuidado com o peixe e com a limpeza do reservatório de partículas sólidas”, conta Denis.
A facilidade, segundo ele, se dava pelo fato de ser um sistema pequeno e “bem familiar”. Por isso, na casa do engenheiro, cada pessoa tinha uma atribuição. “Meu filho tinha uma parte do serviço dele, minha enteada também. Tanto no sistema, quanto no solo”, explica.
Alface, morango e hortelã foram protagonistas na nova horta da família de Denis, que ficou encantado por fazer parte daquilo. Uma das coisas que mais o surpreendeu foi a possibilidade de criar animais. “Achei muito interessante criar peixes no sertão. Eu me pergunto por que isso não entra de fato em Ibimirim e em outras regiões. É um negócio que você vai ter lucratividade em um pequeno espaço de produção e criação”, avalia.
Desde outubro de 2022, Denis mora em Petrolina (PE). Ele saiu de Ibimirim para se dedicar a outra profissão: manutenção de máquinas. Seu sistema agrofotovoltaico ficou. “Se eu tivesse uma área aberta, eu o montaria. Tenho certeza que iria plantar e fazer uma horta urbana”. Por enquanto, o equipamento está em Ibimirim, desmontado.
Geralda lamenta não poder consertar ou trocar o equipamento danificado. Ela gostaria que fosse reativado. Enquanto isso não acontece, ela continua plantando hortaliças no método tradicional, além de criar ovelhas e uma bezerra nova. Ela mostra o fruto de seu trabalho e diz que não quer saber de outra profissão. Certa vez trabalhou como doméstica, mas desistiu: “Tinha 19 pessoas pra eu cozinhar. Era trabalho de duas pessoas”, lembra.
O sol do sertão
As experiências com o sistema agrofotovoltaico no Semiárido mostram o potencial do projeto em trazer segurança alimentar, as possibilidades para o cultivo no semiárido e novas formas de pensar o uso da energia solar. Ao mesmo tempo, revela dificuldades para a implantação do projeto em larga escala e manutenção. Em Ibimirim, dos cinco sistemas implantados, nenhum está funcionando; em Manari, só dois estão em operação.
Segundo o coordenador Sebastião Alves, é inviável para o Serta conservar os equipamentos uma vez que o recurso do financiamento da Fundação Banco do Brasil foi destinado somente ao período em que o projeto estava sendo executado. “A falta de compromisso social do governo de divulgar projetos semelhantes é um desafio. Se houvesse uma política para a gente fazer aquaponia e instalar biodigestores, estaríamos em condições econômicas e sociais muito melhores”, argumenta Sebastião.
O especialista acredita ainda que falta visibilidade ao sistema agrofotovoltaico, que é desconhecido pela maioria das pessoas. Para ele, a produção de alimentos em larga escala e com utilização de agrotóxico não resolve o problema da insegurança alimentar no Brasil. “No final do governo Bolsonaro tinha 30 milhões de pessoas passando fome e o agronegócio estava produzindo alimento que dava pra alimentar mais do que o Brasil inteiro”.
Sebastião defende a produção de energia através de sistemas independentes. “As grandes usinas solares estão sendo implantadas à custa do desmatamento da Caatinga. Estão pegando nossos raios de sol e transformando em energia caríssima. E antigamente, nós, os pobres, que éramos donos do sol”, reflete.
*As reportagens da série ‘Futuro renovável começa no Semiárido’ foram produzidas com o financiamento do edital Nordeste Potência junto com o Instituto ClimaInfo